Pedagogia

Ciência ou Diciplina

QUE ENSINAR: CIÊNCIA OU DICIPLINA?
Por José Reis

Pouca, pouquíssima atenção se dá entre nós à história da ciência no ensino de várias diciplinas dos cursos de qualquer nível. Não se cuida praticamente disso no curso secundário e, também, não se cogita disso nas universidades. Haverá muitos professores que, ante nossa afirmação, se apressem a alegar que não, que eles jamais deixam de começar suas aulas pelo relato do “histórico” de cada assunto. Talvez o façam, é verdade. Mas esse histórico que se costuma escrever na abertura de cada capítulo, nos livros, em letrinha miúda, e que o mestre também diz em voz , por assim dizer, miúda, para acompanhar quanto possível o livro, não, não é a isso que eu chamo de história da ciência, capaz de servir de base à melhor compreensão dos problemas ensinados.

O essencial não é dar, a respeito de cada assunto, meticulosamente, uma següência de datas e nomes que com ele apresentam alguma relação. O importante é que o aluno compreenda as grandes idéias em choque, os grandes problemas que surgiram na mente dos pesquisadores e, muito particularmente, o que caracterizava o ambiente social, intelectual e econômico das épocas em que se desenrolaram essas histórias. Aí, sim, estaremos transmitindo mais do que um simples calendário, estaremos enriquecendo, em vez de tornar mais pesado, o ensino da ciência.

O importante é que o aluno sinta que as idéias que hoje conhecemos, e em torno das quais discutimos, tem uma história, e que resultam de um lento processo de evolução e de amadurecimento. Assim sentindo, perceberá ele facilmente quanto devem ser também provisórias as nossas idéias, por mais sólidas que pareçam: sentirá, também, como vários sistemas podem explicar satisfatoriamente os fatos, vivendo a ciência de um trabalho inacabável de procurar, dentre eles, os que expliquem, de maneira mais geral, um número cada vez maior de fatos. Desta forma o estudante perceberá com mais facilidade o relativo da verdade científica; e assim percebendo, não diminuirá, certamente, o seu respeito por essa verdade, que, ao contrário, se intensificará, e isto por dois motivos: primeiro, porque ele perceberá quanto de sofrimento, de tortura, de busca, de determinação e de trabalho de gerações existe em cada pequena idéia; segundo, porque verá em cada verdade alguma coisa passível de aperfeiçoamento, alguma coisa humanamente impertfeita, porém gloriosamente humana e, por isso mesmo, digna de sua afeição, de seus esforços e carinhos de torná-la cada vez melhor. Se essas verdades são produto da atividade humana, habituar-se-ão os estudantes a contemplar nelas um aspecto mesmo da vida, e haverão de ter, por elas, aquela “reverência” manifestada por Schweitzer em face da vida.

Falei em ciência e em diciplina. Haverá diferença? Venho insistindo há muito nela, seguindo a conceituação do sábio Singer. Disciplina é o corpo ordenado de conhecimentos. Ciência é antes um processo, uma elaboração de conhecimentos. Ponham os conhecimentos químicos, devidamente ordenados, num compêndio ou numa següência de aulas, e aí teremos a química como disciplina. Ensinemos o aluno a mover-se dentro da química, a investigar, a ter dúvidas e procurar resolvê-las, acrescentando desse modo o seu grãozinho de areia a esse campo de conhecimento, e aí teremos a ciência. Poder-se-ia simplificar a explicação, dizendo que ciência é o que os cientistas fazem, e disciplina o que os “professores de ciência” tantas vezes ensinam, sob a pressão dos horários e dos programas. Mas eu não gostaria dessa simplificação, pois embora entenda que não seria possível limitar-se o “professor de ciência” ao ensino da ciência, sob pena de deixar os alunos desarvorados e, não raro, sem o mínimo de conhecimentos essenciais, ou de instrumentos fundamentais para a própria compreensão dos problemas, também não seria possível ensinar-lhes ou transmitir-lhes apenas a diciplina, pois isto faria deles exatamente aquilo que tantas vezes lamentamos encontrar nas escolas: moços com a cabeça repleta de princípios, fórmulas, noções, terminologias, mas sem qualquer nexo entre elas e, muito em particular, com a realidade.

Muito mais me agradaria definir a diciplina como aquilo que se aprende ou ensina pelo processo elementar do treinamento, e a ciência como o que se absorve pelo processos, mais elevado, do diálogo e da conversação, em que os prórpios fatos servem de interlocutor. Aproveito, nessa tentativa de caracterização das duas atitudes, as idéias tão bem desenvolvidas por R. Redfield a respeito do processo mesmo da educação: “Ao aprender boa parte da gramática, alguns elementos de geografia e da cronologia, e muitas outras coisas, a conversação seria totalmente pertubadora. Algumas coisas aprendem-se melhor sem debate; são elas os instrumentos do espírito. Adquirem-se pelo treinamento; não constituem educação, mas são importante meios para isso”. (The Educational Experience, Fund for Adult Education, Pasadena, 1955, pág. 25)

O segredo do ensino das ciências há de estar num justo equilíbrio. Forçados a ensinar diciplinas, não poderão os mestres deixar de animá-las e vitalizá-las com o ensino simultâneo da ciência. E, nesse ensino, não esquecerão a história da ciência, não a simples cronologia, mas a história mesma.

Retirado de: Reis, José. Educação é Investimento. São Paulo, IBRASA, 1968.

Fonte:
http://www.geocities.com/revista_espiral/more6.htm