Doenças

Gripe aviária põe Brasil em estado de alerta

Influenza, gripe aviária, H5N1, vírus mutante, pandemia, morbidade, mortalidade. Há pelos menos três semanas a sociedade convive diariamente com um palavreado científico que, dado o contexto em que vem sendo empregado, passou a ter o significado de uma “supergripe iminente de proporções arrasadoras”. De fato, há motivos para preocupação. Até a semana passada, 61 pessoas haviam morrido entre os 118 casos de contaminação humana confirmados desde dezembro de 2003, quando os surtos começaram a se propagar pela Ásia e Europa. Mas cientistas do mundo inteiro tentam evitar que o estado de alerta determinado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) evolua para uma onda de pânico generalizado.

“Sim, o risco de uma pandemia existe, mas é praticamente impossível de ser quantificado”, diz o infectologista Luiz Jacintho da Silva, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. “Esse risco sempre existiu independente do que está acontecendo agora na Ásia e na Europa”, concorda a infectologista Nancy Bellei, pesquisadora de vírus respiratórios da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Segundo os especialistas, o que vai determinar ou não uma epidemia em escala mundial é a mutação (transformações em sua estrutura genética) do vírus causador da influenza (gripe) a ponto de gerar uma cepa completamente nova, para a qual toda a população é suscetível. Geralmente este fenômeno acontece quando uma cepa, que originalmente só infectava animais, como as aves, atravessa a barreira das espécies, passa a infectar diretamente os seres humanos e, posteriormente, adquire a capacidade de transmissão inter-humanos.

O infectologista Luiz Jacintho da Silva, professor da FCM da Unicamp: “O risco de uma pandemia existe, mas é praticamente impossível de ser quantificado” (Foto: Antoninho Perri)O vírus que está infectando aves na Ásia e na Europa atende pelo nome de H5N1. A sigla faz referência à hemaglutinina (H) e à neuraminidase (N), proteínas que estão no envelope externo do vírus (espécie de cápsula). Cada cepa tem uma composição diferente de hemaglutinina e neuraminidase. A cepa em questão é do tipo H5 (existem H1 até H16) e N1. A hemaglutinina se liga às células humanas permitindo a entrada do vírus. A contaminação de humanos pelo H5N1 é algo recente e, até agora, tem ocorrido somente de aves para pessoas. Mas se um vírus aviário receber um “envelope mais humano” após sofrer uma mutação, ele adquire a capacidade de transmissão inter-humanos, abrindo caminho para a pandemia.

Há pelos menos dois cenários que favorecem mutações capazes de tornar o vírus transmissível de humano a humano. Um deles, chamado de “mix de código genético”, ocorreria da seguinte forma: uma pessoa é infectada, ao mesmo tempo, por um vírus da gripe aviária e por outro influenza, como o que causa a gripe comum. Os dois vírus entram nas células do hospedeiro e começam a se multiplicar. Numa dessas replicações, o material genético dos dois tipos de vírus se misturam e recombinam num terceiro tipo. Este novo vírus pode ter características que permitam a transmissão direta de pessoa para pessoa.

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“A disseminação do H5N1 entre aves aumenta em muito a probabilidade de interação com um vírus humano e a possibilidade de ocorrer uma mutação”, diz Luiz Jacintho. “Uma recombinação com outro vírus deverá ocorrer em algum momento; é mais provável ocorrer do que não ocorrer”, completa.

“A chance existe, mas sabe-se por experiência que as co-infecções não são extremamente freqüentes”, observa Nancy. Ela admite, porém, que se uma contaminação desse tipo acometesse uma ou duas pessoas num país populoso, por exemplo a China, seria o suficiente para a epidemia eclodir.

A segunda possibilidade, chamada de “mutações acumuladas”, ocorreria da seguinte forma: quando o vírus infecta um organismo, ele estimula o sistema imunológico e o corpo envia células de defesa para destruí-lo. Para enganar o sistema imunológico, muitos vírus sofrem pequenas mudanças nas proteínas que ficam em sua superfície. No influenza, tais mutações ocorrem com freqüência porque o vírus tem um mecanismo que permite erros no código genético durante a replicação viral. Numa dessas mudanças, o vírus pode se tornar transmissível entre humanos.

“Esse é um caminho bem provável”, diz Nancy. Segundo ela, as condições para que a mutação ocorra são intrínsecas ao vírus. “Quanto mais o vírus se replica, ou seja, duplica sua carga genética para fazer novos vírus, mais chance ele tem de sofrer mutações”, explica. As mutações, de acordo com a especialista, tanto podem ampliar quanto diminuir o seu grau de virulência. “Ao invadir a célula são milhões de vírus e todos eles estão mudando”, diz. “É uma loteria e, em algum momento, pode haver uma determinada mutação que permita a transmissão entre humanos”.

Há ainda, segundo os especialistas, uma terceira possibilidade, não de todo descartada. Nesse outro cenário, ocorreria o mesmo mecanismo do “mix de código genético”, só que o hospedeiro seria um mamífero de outra espécie em vez do homem. Um suíno, por exemplo. A recombinação dos vírus no organismo do hospedeiro criaria as condições necessárias para a sua transmissão entre humanos.

“Todos esses cenários são possíveis, mas é impossível prever qual ocorrerá primeiro”, analisa Luiz Jacintho. Na Indonésia, por exemplo, porcos pegaram H5N1 de aves. São mamíferos que se contaminam facilmente com gripes aviárias. Se, eventualmente, um dos suínos contaminados pelo H5N1 também estiver contaminado pelo influenza da gripe comum, pode ocorrer o quadro que a revista New Scientist descreve como de “pesadelo”: a junção dos dois, resultando num híbrido. O vírus resultante pode ter as características mortais do H5N1 e o grau de contágio duma gripe comum.

Não se trata de mera especulação. Estudos recentes do código genético do H1N1, causador da Gripe Espanhola (responsável por 40 milhões de mortes em 1919) revelaram semelhanças “impressionantes” entre aquele vírus e a cepa H5N1, causadora do atual surto da doença entre aves da Europa e da Ásia. Para alguns observadores, isso sugere que foram necessárias mudanças relativamente pequenas para que um vírus aviário como o de 1918 passasse a infectar humanos. “É provável”, diz Nancy. “Talvez o vírus tenha conservado o miolo de H5 mas desenvolvido o envelope de H1, e aí ficou mais transmissível”, especula. “A genealogia viral é muito difícil de estabelecer com o material obtido daquela época”, completa.

Caso o causador da atual gripe aviária aprenda a “saltar” de pessoa para pessoa uma pandemia é quase certa. Entretanto, segundo os especialistas, ainda é cedo para falar no mesmo grau de letalidade causado pelo vírus da gripe espanhola. “O vírus de agora também é extremamente patogênico, mas não dá para saber”, diz Nancy. “Quando um vírus é muito patogênico e letal, geralmente transmite menos”, completa. “Ainda não dá para especular sobre a letalidade e virulência de uma cepa pandêmica descendente do atual H5N1”, analisa Luiz Jacintho. Ele pondera, porém, que, se já ocorreu com a cepa de 1918, poderá acontecer novamente. “Teoricamente é possível”.

Sabe-se que o intervalo entre as três principais pandemias de influenza que ocorreram no século passado foi de 39 anos entre as chamadas Gripe Espanhola e a Gripe Asiática e de 11 anos entre esta e a Gripe de Hong Kong. Segundo os especialistas, não é possível prever exatamente quando uma nova pandemia ocorrerá, mas é viável, por meio do monitoramento dos vírus influenza e da situação epidemiológica nacional e internacional, identificar indícios de que este fenômeno possa estar mais próximo de acontecer.

Apesar das especulações, todas as contaminações humanas registradas no episódio atual foram transmitidas por aves. O H5N1 está presente nas fezes, sangue e secreções respiratórias das aves infectadas. A contaminação humana pode ocorrer pelo contato direto com as aves infectadas por meio de inalação dessas secreções (inclusive durante a limpeza e a manutenção nos aviários ou criadouros sem os cuidados necessários de proteção) ou durante o abate ou manuseio de aves infectadas. Segundo a OMS, não foi evidenciada transmissão pela ingestão de ovos ou pelo consumo de carnes congeladas ou cozidas de aves infectadas.

Uma vez no organismo, o H5N1 desencadeia um quadro mais grave que a gripe comum. “A gravidade dessas cepas se manifesta pela capacidade de causar pneumonia viral e falência múltipla de órgãos”, diz Luiz Jacintho. Normalmente, os vírus da influenza acometem células do trato respiratório. “No caso do H5N1 também há, além dos sintomas respiratórios, diarréia, encefalite, febre, dor abdominal, náuseas e coma”, explica. “Cepas muito virulentas, como se crê tenha ocorrido em 1918, seriam capazes de infectar outras células, de outros órgãos”, explica.

Até o momento, não foi desenvolvida uma vacina capaz de combater o H5N1. Pesquisas estão sendo desenvolvidas e os governos da Hungria e da Austrália afirmaram que obtiveram resultados efetivos nos últimos testes. Sem um agente que previna o organismo contra a ação do vírus, a única alternativa até agora é o antiviral Tamiflu, produzido exclusivamente pelo laboratório farmacêutico suíço Roche Holding. O medicamento mostrou-se eficaz no tratamento da gripe aviária em humanos. Esta droga, juntamente com outra semelhante, o zanamivir, age inibindo a liberação do vírus da superfície celular, impedindo assim sua replicação. Mas os especialistas desaconselham uma corrida às farmácias para estocar o produto em casa. “Quem estiver doente deve procurar o médico”, diz Nancy. Outra medida é manter-se bem informado.

O governo brasileiro acertou a compra do antiviral Tamiflu, numa quantidade suficiente para tratar 9 milhões de pessoas. Ainda não está definida quando chegará a primeira remessa do medicamento. Na compra, foram gastos R$ 193 milhões. O Ministério da Saúde também deverá providenciar o treinamento de pessoal, o monitoramento de aves migratórias, a fiscalização das importações e a restrições de animais vivos de um estado para outro. Na opinião de Luiz Jacintho, porém, caso a pandemia ecloda, seria impossível impedir a sua entrada no Brasil. A melhor estratégia, segundo o infectologista, seria retardar a disseminação, ganhando tempo até que se tenha disponível uma vacina, e reduzir a mortabidade da epidemia.

Edição 308 – 7 a 13 de novembro de 2005

Autor:
CLAYTON LEVY
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Fonte:
http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/novembro2005/ju308pag06.html