Geografia

A Flora do Cerrado

“Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador… O Urucuia vem dos montes oestes. Mas, hoje que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas há lá. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães,é questão de opiniães… O sertão está em toda parte… O sertão é do tamanho do mundo…”
J.G. Rosa

Assim, o renovador da linguagem literária, o escritor brasileiro João Guimarães Rosa, na década de 50, reproduz o Cerrado:

– Do tamanho do mundo pois é tão extenso, do tamanho do mundo pois é tanta diversidade da flora que encerra!…

Essa imensidão que ocupa 23% do território brasileiro não possui uniformidade de fauna e de flora. Ao possuir fronteiras limítrofes com outros biomas do Brasil. O cerrado se enriquece com espécies que são características de outros biomas. Da Amazônia, da caatinga, do Pantanal, da Mata Atlântica, as espécies estendem-se para os cerrados e confundem-se com as espécies de sua flora nativa. São nessas faixas de transição que os biomas se entrelaçam, emprestando ao Cerrado características variadas, tornando-o tão diversificado, tão imenso.

Aos poucos, à medida que o solo e o clima se definem, o Cerrado mostra suas características próprias. A flora diversificada da região agrupa-se em ambientes diferentes, originando paisagens de aspecto fisionômico distinto numa mesma região. Ao descobrir o cerrado, um observador atento vai detectar esses aspectos distintos em sua vegetação. Ora, uma área formada de arvores baixas com galhos volumosos, cascudos e retorcidos, e uma folhagem rala, constituídas de folhas grossas, é vizinha de campos limpos, onde arbustos são escassos e arvores inexistentes.

Outras vezes, áreas imensas, onde predominam arbustos e vegetação herbácea, chocarri com a exuberância de uma vegetação mais densa, de arvores altas, situada ao longo de rios e vales supostamente férteis. E os buritis – Mairilia vinifera -, numerosos em áreas de arvores esparsas em campos sem arbustos ou arvores.

Localizado no Planalto Central brasileiro, o Cerrado ocupa uma área de 2 milhões de quilômetros quadrados. Cerca de 90% de seus solos são de uma fertilidade extremamente baixa e apresentam elevada acidez e toxidez, pela alta concentração de alumínio.

A temperatura media anual é de 21,6 ºC; media mais elevada de temperatura, registrada no mês de novembro, é de 25,5 ºC; a media mais baixa, registrada em julho, é de 12,6 ºC. A região goza de uma media de 218 horas do céu azul por mês, variando entre 303 horas em agosto e 125 horas em dezembro.

A distribuição temporal das chuvas é a característica agrometeorológica mais importante do Cerrado – a estação chuvosa, com cinco a sete meses de duração – de novembro a abril – concentram até 90% das precipitações. Na estação seca – maio a outubro – as chuvas são escassas.

Na estação das águas, as chuvas torrenciais ou as “criadeiras”chegam mudando a paisagem. Do marrom acinzentado e do aspecto de abandono do Cerrado, renasce numa beleza latente. Verde de todos os tons brotam nos arbustos, cobre os galhos nus de arvores troncudas; gramíneas, leguminosas e compostas ressurgem do solo seco e empoeirado. O Cerrado parece cantar novamente, é uma sinfonia de verdes e o sertão se embeleza mais uma vez. É quando exibe sua rica diversidade de espécies.

O Pau Santo, o Araticum, o Murici, entre outras tantas espécies, misturam o colorido de suas flores à massa verde suntuosa dessa época chuvosa.

Quando maio se aproxima, o verde vibrante do Cerrado vai se desbotando, muitas espécies perdem suas folhas, as gramíneas, as leguminosas e as compostas secam – a sinfonia verde aquieta-se. Parece que o Cerrado morre, mas não; nessa imensidão, onde o ocre acinzentado predomina, surgem cores vibrantes em arvores de galhos secos,escuros e retorcidos, em hastes minúsculas próximas ao chão esturricado, brotam flores miúdas de beleza impar.

O colorido dos Ipês , dos Buritis e das Cagaitas são os testemunhos de vida na vastidão ressecada com aspecto de abandono.

PLANTAS MEDICINAIS E FLORES

A flora do Cerrado possui uma incalculável fonte de drogas medicinais. No entanto, apenas 90 espécies de plantas são usadas com propósitos medicinais. Muitas são usadas pelos nativos desde os tempos imemoriais e hoje são comercializadas Brasil afora.. A Sucupira Branca, contra infecção, a Catuaba energizante, o Barbatimão cicatrizante, são alguns exemplos de drogas conhecidas e comercializadas.

As flores estão presentes na região durante todo o ano.Expressão, com seus formatos distintos e suas cores as mais variadas, da beleza dessa rica biodiversidade genética do ecossistema.

Apesar do solo bruto e das rudes condições climáticas do Cerrado – o sol, ás vezes, causticante, chuvas torrenciais, secas prolongadas, inverno com noites de temperaturas muito baixas -, as flores do Cerrado brotam por toda parte e em toda as estações. E brotam em condições e lugares quase impossíveis, contrastando sua delicadeza com a rusticidade poderosa do Cerrado. Num arbusto ressequido e quebradiço, numa arvore troncuda e cascuda, numa leguminosa, numa composta frágil, surgem flores delicadas, capazes de sensibilizar o mais indiferente ser humano. Esse contraste entre a rusticidade do Cerrado e a delicadeza de suas flores é surpreendente. Traduz uma beleza da qual estamos tão próximos e que, muitas vezes, nos passa despercebida.

FOGO

Fósseis de galhos carbonizados já foram encontrados na região. Tribos indígenas do Planalto Central do Brasil já utilizavam a pratica denominada “coivara”, a queimada, como forma de preparação do solo, utilizada pelos índios.

Aproveitavam, assim, o solo limpo, sem arrancar as espécies nativas, plantando suas roças; após a colheita, deixavam a área em paz para recobrar sua diversidade original. Assim, a natureza, devagar, após anos e anos de zelo, encarregava-se de recuperar a área. O cerrado mantinha-se quase intocado; a natureza tinha o tempo suficiente para refazer o que o índio tocava com sabedoria.

Após as queimadas os troncos revestidos de cascas grossas e enrugadas, das sementes dispersas, cobertas por rígidas estruturas, brota a vida – despertada pela combustão. Embora agressivas, deixando a natureza com aspecto desolador, as queimadas fazem parte dos contrastes do Cerrado – por meio delas renascem muitas espécies nativas.

No entanto, não devem ser esquecidos os aspectos nocivos do fogo sobre o ecossistema Cerrado. A freqüência, o tipo de fogo e a época das queimadas provocam alterações, muitas vezes irreversíveis, nas feições do Cerrado. O Campo Sujo, por exemplo, é conseqüência de queimadas sucessivas no Cerradão. Espécies menos resistentes desaparecem… Essa tradição cultural da região, se utilizada de forma racional, dando à natureza uma trégua para que se regenere, é uma forma de perpetuar muitas espécies. Se explorando de modo racional, o Cerrado sobreviverá às agressões dos dias atuais e as gerações futuras poderão usufruir de seus recursos naturais e da sua beleza.

OCUPAÇÃO

Antropólogos têm indícios da presença humana – tribos indígenas – desde 300d.C. No inicio do século XVIII, atraídos pela extração do ouro e outras pedras preciosas, colonizadores europeus e brasileiros fundaram cidades, desenvolveram atividades extrativistas seletivas, a caça, e algumas atividades agrícolas nesta região do Planalto Central.

Antes dos anos 50, a densidade populacional da região era muito baixa e o impacto ambiental, provocado por atividades extrativistas ou atividades agropecuárias, era inexpressivo. Entretanto, nos últimos 40 anos, a ocupação humana acelerou impactantes na região.

A população da região Centro-Oeste cresceu seis vezes, entre 19580 e 1990, passando para cerca de 10 milhões de habitantes, com uma densidade media de 6,4 habitantes/KM2.

Incentivada por políticas governamentais, a ocupação do Cerrado tem sido em larga escala e em ritmo cada vez mais acelerado. A expansão das áreas urbanas tem causado grandes impactos ambientais – áreas decapadas, abertura de cascalheiras, cortes de morros, aterros, drenagens; desmatamento para obtenção de lenhas e escoras para construção e fornos, aumento do consumo de água e construção de barragens de abastecimento de energia. A destruição das matas de galeria, veredas e campos úmidos, cachoeiras e corredeiras é uma das conseqüências do barramento dos rios de planalto.

Embora a ocupação, associada à urbanização, tenha provocado significantes alterações ambientais, o fenômeno que mais tem causado mudanças no meio ambiente regional é a expansão da atividade agrícola. Desde a década de 70, a região vem-se tornando uma grande produtora de grãos, com uma agricultura moderna e altamente tecnificada.

Cerca de 50% da região do Cerrado está atualmente, incorporada ao Sistema de Produção Agropecuário Brasileiro. Com esse crescimento econômico e tecnológico, aumentam também os problemas decorrentes a agressão ambiental, muitas vezes causada pela ignorância, outras vezes decorrentes de políticas governamentais, ou mesmo do abuso da terra para saciar ambições humanas.

O manejo inadequado do solo, a monocultura, a seqüência de cultivos que favorecem a maior incidência de doenças, pragas e invasoras, o uso excessivo de agrotóxicos, o desmatamento indiscriminado, a localização de barragens em locais inadequados e a ocupação de solos impróprios para a agricultura, entre outros fatores, são causas do uso desordenado e irracional da natureza, que, no decurso de alguns poucos anos, provocam profunda degradação ambiental.

O sucesso da ocupação e da exploração da região está vinculado à conscientização dos seus habitantes, ligados direta ou indiretamente ao campo e a um eficiente sistema de pesquisa, de extensão e de fiscalização florestal. A exploração racional, aliada a uma política de conscientização e de valorização do ecossistema quer nos cerca, é o caminho a ser seguido para a conquista plena dos Cerrados – só haverá conquista se houver preservação. Quando faltar a preservação, faltará a agricultura, fonte sustentadora que impulsiona a sobrevivência humana na região.

Não poderia terminar esta introdução, sem antes agradecer a Deus pela vida. A meu avô Antonelli Bhering (in memorian), que, com poucas palavras e muito exemplo, colocou-me, na infância, em contato com a natureza – em Araponga, MG, Serra dos Arrepiados e Serra do Brigadeiro – e com o povo simples, conhecedor das coisas do campo. A meus pais, Zuza e Nasser (in memorian), pelo exemplo de trabalho e incentivo para estudar. A meus irmãos pela amizade sincera. A minha esposa. Maria das Graças, a meus filhos, Thiago, Pedro e Raquel, pelo amor,dedicação e apoio, a meus ex-mestres, pelos ensinamentos. A Mary Grandall, Judy Marques, Cecília Macedo, Gracinha Gaunt, por terem, inconscientemente, me despertado para este projeto. A Maria Cecília Londres Fonseca, pelo encaminhamento efetivo que resultou na publicação deste livro. A minha admiração e reconhecimento à pintora Therese von Behr, que, por sua sensibilidade artística, mostra a variedade e a beleza da flores da região, despertando a curiosidade e conscientizand
o gente de todos os cantos do mundo para a preservação da flora do Cerrado.

Os anos de trabalho na região, as aulas para alunos do primeiro e segundo grau sobre o Cerrado, a coleta de plantas nas horas de lazer, o tempo a escutar de gente nativa estórias e curiosidades sobre a região; tudo isso aumentou meu conhecimento e admiração, reforçando o desejo de contribuir para que outras pessoas também pudessem conhecer parte das 6 mil espécies existentes no bioma do Cerrado.

A todos que, com boa vontade ajudaram-me em todas as etapas deste trabalho, muitíssimo obrigado.