Biografias

William Gilbert (1544 – 1603)

Os antigos gregos conheciam uma pedra, capaz de atrair pedaços de ferro, a que chamavam magneto, porque provinha da Magnésia, na Tessália. Tales de Mileto (século VI a.C.) a menciona e, no diálogo Íon de Platão (século IV a.C.), Sócrates afirma poder ligar vários anéis de ferro com o auxílio de um pedaço de magneto, comparando o fenômeno à inspiração poética. O magneto atrai não apenas o anel de ferro que o toca, mas também todos os que se aproximam do último, assim como o poeta inspirado suscita ao seu redor entusiasmos em cadeia. (Mais tarde, os romanos estenderam o conhecimento empírico sobre os fenômenos relacionados com a estranha pedra.)

Gregos e romanos, no entanto, ficaram na simples constatação e na metáfora poética, não atingindo o nível da explicação científica; quando tentavam faze-lo, permaneciam amarrados a concepções fracas e finalistas. Acreditavam que o ferro tivesse anéis para prender pequenos ganchos dos magnetos.

A Idade Média não fugiu a essas limitações. Alexandre de Afrodísia e Averroés, por exemplo, eram de opinião que o ferro se aproxima do ímã, a fim de encontrar uma natureza semelhante, como se fosse dirigido por sua causa final.

Esse panorama negativo seria modificado somente no século XIII, ao ser introduzida no Ocidente a bússola dos chineses, que a conheciam pelo menos desde o século XI. O matemático e inventor Shen Kua (1030-93) refere-se ao uso do ímã como indicador de direção, enquanto Chu Yu, em 1100, relata seu emprego na arte da navegação marítima.

Na Europa, a primeira referência à bússola encontra-se no inglês Alexander Neckan, mas é na obra “De Magnete”, redigida em 1269 pelo cruzado francês Pierre de Maricourt, que se descrevem pormenorizadamente as propriedades dos ímãs. Revelando senso de experimentação surpreendente para a época, distinguiu claramente o fenômeno da bipolaridade e verificou que cada um dos pólos volta-se para um dos pólos do mundo. Realizou a experiência do ímã partido, constatando a formação de quatro pólos, que se reduzem a dois, quando o ímã é recomposto novamente.

Acreditava que a bipolaridade estivesse ligada a todo o universo, o ímã trazendo em si “a semelhança do céu”. Pierre de Maricourt permaneceu praticamente desconhecido por mais de trezentos anos. No Renascimento, a história do magnetismo sofreu um retrocesso, enquanto explicação científica. Geronimo Cardano (1501-76), por exemplo, sustenta no “De Subtilitate” que as pedras vivem, envelhecem e morrem e que, “envelhecida, a pedra de Hércules não mais atrai o ferro”.

Não obstante as idéias erradas dos filósofos, nesse período ocorreram alguns progressos importantes, como a descoberta da inclinação e declinação, a distinção entre atração elétrica e atração magnética e as primeiras medidas de atração e repulsão feitas por Giovanni Battista della Porta (1535-1615), descritas no livro “Magia Naturalis”.

Tais contribuições foram mais fruto da prática e técnica dos marinheiros renascentistas do que resultado de pensamento científico. Uma verdadeira ciência do magnetismo estava ainda esperando pela instalação definitiva do espírito matemático e experimental. Curiosamente, o personagem responsável pela fundação do magnetismo como ciência não foi um conhecido físico, mas o médico particular da rainha Elizabeth I, William Gilbert.


(Casa onde Gilbert viveu)

Gilbert nasceu na pequena cidade de Colchester, no Essex, num dia e mês conhecidos com exatidão – 24 de maio. Todavia, não se sabe o ano; provavelmente terá sido em 1540. Com certeza, sabe-se que foi o primogênito dos cinco filhos de Jerome Gilbert, magistrado muito considerado na cidade. O garoto bem cedo foi estudar na escola da localidade. Em 1558, ou no St. John’s College, de Cambridge, onde prosseguiu os estudo durante onze anos, dedicando-se mais às disciplinas científicas, nas quais revelava grande aptidão. Em 1565, foi nomeado examinador de matemática e quatro anos mais tarde recebeu o título de doutor em medicina.

Não se conhece muito dessa época de sua vida, a não ser o êxito como estudante e uma longa viagem empreendida pelo continente europeu. Na Itália, esteve provavelmente em Pisa, onde exerceu honrosamente a profissão de médico e conheceu alguns estudiosos, com os quais posteriormente manteve correspondência. Em Veneza tornou-se amigo do teólogo Paolo Sarpi.

Em 1573, estava novamente em Londres; inscreveu-se no Colégio Real de Médicos, onde viria a ocupar cargos de notável importância, como os de censor, tesoureiro e presidente. Em 1589, tornou-se membro do comitê para redação da “Pharmacopaeia Londoniensis”, publicada muito depois, em. 1618.

O renome de Gilbert como médico cresceu a ponto de a rainha Elizabeth I convidá-lo para tratar exclusivamente dela. Não foi, no entanto, como discípulo de Hipócrates que ingressaria na história da ciência; isso aconteceu com a publicação, em 1600, da obra “De Magnete, Magneticisque Corporibus et de Magno Magnete Tellure – Physiologia Nova”.

O que se evidencia logo aos primeiros capítulos do livro é a posição claramente crítica diante da obra dos antigos, que julga incapazes de elaborar o material empírico. Gilbert ataca também acerbamente os, contemporâneos, aos quais chama de literatos bufões e copistas, que julgam fazer filosofia quando não sabem fazer mais que remanejar e dissertar sobre os dogmas das doutrinas vindas de Aristóteles.

O maior mérito do “De Magnete” consiste justamente em apresentar mais de seiscentas experiências, em parte feitas pelos predecessores, outras realizadas por ele mesmo, sob orientação de informações recebidas quase sempre de homens do mar. Retomando as idéias de Pierre de Maricourt, Gilbert foi o primeiro a chamar de pólos as extremidades de uma agulha que ficam dirigidas para o norte e para o sul da Terra. Definiu como magnéticos os corpos que, como os ímãs, se atraem, e descobriu as afinidades e diferenças entre corpos elétricos e corpos magnéticos. Mostra como qualquer material pode tornar-se elétrico, ao passo que só os compostos de ferro são capazes de magnetização. Atualmente, sabe-se que isso não é correto, pois há substâncias como o cobalto e o níquel, por exemplo, que também apresentam propriedades magnéticas. De qualquer forma, a Gilbert cabe o mérito da distinção entre o magnetismo e a eletricidade.

Especialmente importantes foram as contribuições de Gilbert a respeito do magnetismo da Terra. Servindo-se engenhosamente de um ímã esférico – “terrella”, como o chamava -, sobre cuja superfície apoiava-se uma agulha, estudou suas propriedades e descobriu que correspondiam às da Terra. Daí concluiu ser esta um grande ímã, conseguindo explicar a direção norte , sul da agulha magnética e sua inclinação, bem como definir o eixo de um ímã e as linhas de força da Terra.

“Os raios da força magnética distribuem-se por toda parte em zonas concêntricas, e o centro de tais orbes não fica no pólo, mas no centro da pedra (de ímã) e da terrella. Do mesmo modo, o centro da Terra é o centro dos movimentos magnéticos. . . “

Assim, o ímã não é uma justaposição de dois centros de atração, mas uma unidade. Daí decorre que as linhas de força se estendem também pelo interior do ímã e formam um circuito fechado.

Gilbert rejeita todas as explicações mágicas, desenvolvendo uma idéia que exercerá enorme influência sobre Kepler e Newton: os corpos atraem-se em virtude de uma força física. Que pode ser medida e estudada. Essa força pode ser constatada nos ímãs e no ferro.

A influência das novas idéias de Gilbert foi extensa e profunda, tendo provocado grande interesse e fazendo do médico da soberana um homem famoso em toda a Europa. Galileu proclamou-se fervoroso admirador do médico inglês e mesmo arístotélicos como Nicolau Cabeo e Atanasius Kircher foram seus discípulos. O teólogo Paolo Sarpi afirmou ser ele o único escritor original da época.

Na Inglaterra, Francis Bacon elogiou-lhe o pensamento filosófico, especialmente o uso do método experimental. Embora Bacon não aprovasse completamente as teses de Gilbert, serviu-se de alguns trechos do “De Magnete” para apoiar as próprias idéias. A proximidade entre as concepções dos dois é particularmente evidente numa obra de Gilbert, publicada postumamente, em 1651, e intitulada “De Mundo Nostro Sublunari Philosophia Nova”. Nela é esboçado um novo sistema de filosofia natural (como era então chamada a física), sobre as ruínas da filosofia aristotélica. Quase desconhecida, caracteriza-se por grande originalidade de pensamento e atitude crítica diante da escolástica imperante.

O conflito com o velho espírito medieval, que impedia o surgimento de uma verdadeira ciência da natureza, não foi travado apenas nos domínios da pesquisa pura. Em sua casa em Colchester, Gilbert costumava reunir um grupo de estudiosos para debater todos os problemas da época. Ao transferir-se para a corte, a fim de atender à rainha, formou na residência londrina uma vasta coleção de livros, instrumentos e minerais, sempre à disposição dos amigos apaixonados pelos mesmos interesses. Era um grande animador de reuniões, que depois se tornaram regulares e mensais. Foram elas que levaram à formação da Royal Society, instituição que exerceu papel fundamental no desenvolvimento da ciência inglesa. A importância dessas reuniões é facilmente compreensível, considerando-se que cumpriam a mesma função hoje confiada a congressos, seminários e, sobretudo, à impressão de obras.


(Gilbert faz uma demonstação prática para a rainha Elizabeth)

Gilbert era assim um dos homens mais conhecidos da Inglaterra. Elizabeth o cumulava de todas as atenções e atribuiu-lhe uma pensão anual de 100 esterlinos. James I, seu sucessor, manteve-o como médico da corte, mas Gilbert sobreviveu apenas poucos meses à sua benfeitora. Nunca se casou e não se sabe exatamente como morreu: ao que tudo indica, foi durante uma peste, em 1603. Como legado ao Colégio dos Médicos, deixou a biblioteca e as coleções, infelizmente destruídas durante o grande incêndio de Londres, em 1666. O novo espírito científico, no entanto, permaneceria para sempre.