Geografia

Impactos provocados por usinas hidrelétricas

Por Rodnei Vecchia

A água que não corre forma um pântano; a mente que não trabalha forma um tolo.
Victor Hugo

As múltiplas funções ecológicas e serviços ambientais prestados gratuitamente por cursos d’água são inúmeros e valiosos. Um rio não é um simples canal de água, é um rico ecossistema moldado ao longo de milhões de anos, com ritmos próprios de composição e decomposição. Verdadeiros corredores de biodiversidade fornecem água, ar puro, alimentos, terras férteis, equilíbrio climático, fármacos animais e vegetais e recreação, turismo ecológico, entre outros tantos serviços.

Os sistemas hídricos propiciam também estocagem e limpeza de água, recarga do lençol freático, regulagem dos ciclos biogeoquímicos, estocagem de carbono e habitat para inúmeras espécies, endêmicas ou não. Fornecem ainda outros benefícios tais como pesca, agricultura de subsistência, via de transporte e auxílio na pecuária extensiva. Mexer com essa diversidade ecossistêmica única, que propicia tantos serviços aos privilegiados que usufruem dessas benesses, provoca discórdias de difícil consenso.

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A construção de reservatórios em cursos d’água para a geração de energia elétrica é um feito da engenharia, são estruturas imensas e seus reservatórios represam volumes incomensuráveis de água. Cada projeto tem suas especificidades, mas como toda obra de grande porte, provoca inúmeros impactos ambientais, sociais, econômicos e culturais que transformam as regiões onde se instalam. Determinados impactos são irreversíveis, outros a capacidade de resiliência da natureza em conjunto com ações antrópicas positivas se encarregam de corrigir e/ou restaurar.

Há uma impressão generalizada entre os afetados por novas usinas, que as regiões onde elas se implementam absorvem os impactos sociais, econômicos e ambientais associados à construção e operação, enquanto os benefícios energéticos são distribuídos às demais regiões do país. Indica o bom senso que o razoável é viabilizar projetos que simultaneamente produzam energia para o desenvolvimento econômico, com ampliação da oferta de empregos e melhoria da qualidade de vida da população e ao mesmo tempo proporcionem mínimos impactos socioambientais. Parece um paradoxo, um contrassenso, e é, a provocar discórdias e discussões sem fim.

Existe enorme dificuldade de participação popular no processo de tomada de decisão sobre a instalação ou não da obra. As informações apenas chegam para ser acatadas, por meio de lógicas do sistema capitalista que privilegiam o poder econômico. O envolvimento da sociedade nas questões que envolvem a instalação hidrelétrica é limitado, quando não inexistente. Mesmo quando há participação popular em processos decisórios, como no caso de comitês de bacias, a posição majoritária está normalmente em mãos de empreendedores ou do governo, o que compromete o caráter independente das decisões.

Alguns impactos só começaram a ser compreendidos na sua totalidade recentemente devido à emergência do pensamento ecológico, ao reconhecimento das interações dos fenômenos físicos com o meio ambiente e a sociedade e ao aprofundamento dos estudos científicos.

Em comum, todos os projetos hidrelétricos apresentam problemas de intervenção na natureza e principalmente na vida das populações locais ribeirinhas. Tais constatações são hoje reconhecidas internacionalmente, e necessitam ser cada vez mais internalizadas nos processos de tomada de decisão e nos custos referentes à implantação de novos empreendimentos.

Impacto ambiental de acordo com a Resolução 01/1986 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) significa qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente causada por alguma forma de matéria ou energia resultante de atividades humanas, que direta ou indiretamente afetam a sociedade.

Ë necessário se ter claro que usinas hidrelétricas, que tanto têm permitido a expansão econômica e o progresso do bem-estar da sociedade humana, também têm faces obscuras que demandam constante monitoramento. No caso brasileiro, a precariedade conceitual e empírica dos Estudos de Impactos Ambientais (EIA) e dos Relatórios de Impactos Ambientais (RIMA) é real. Nesses estudos é praxe a prática do “recorta e cola”, relegando ao valo comum particularidades fundamentais da biodiversidade e das condições socioeconômicas locais.

Os estudos de impactos ambientais permitem que sejam analisadas, elaboradas e implantadas formas de minimizar impactos. As restrições ambientais são cada vez mais abrangentes, as organizações não governamentais estão cada vez mais atuantes e as leis mais rigorosas e punitivas. Mesmo assim, há poucos quadros qualificados para análise e acompanhamento das demandas desses estudos, e forte influência política em decisões que têm que ser técnicas. Nesse cenário, os empreendedores de novas usinas invistam maiores recursos em pesquisas e medidas de mitigação de impactos.

Os técnicos que estudam os EIA/RIMA, caso cometam erros crassos e concedam licenciamentos viciados, podem ser co-responsabilizados até criminalmente por seus atos. A Constituição Federal Brasileira de 1988, no parágrafo 3º do artigo 255, relata que qualquer atividade que cause degradação ambiental sujeitará seus infratores, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas, à obrigação de reparar o dano causado e à sanções penais, sem prejuízo das demais (sanções civis e administrativas).

Esta norma constitucional foi devidamente regulamentada pelo art. 3º da Lei 9.605/98, que consagra a figura da responsabilidade penal da pessoa jurídica em casos de crimes ambientais. Entretanto, a responsabilidade da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade da pessoa física, sejam autoras, co-autoras ou partícipes. Tendo em vista a dificuldade de penalizar a pessoa jurídica, admite-se a presunção de responsabilidade em relação àquele que detém o poder de direção, o dever de zelo, de informação e de vigilância.

Dessa forma, é primordial conhecer a legislação ambiental, observar, zelar e acompanhar as atividades terceirizadas, além da pactuação mediante contrato bem estruturado, com delimitação das obrigações e responsabilidades de cada uma das partes. Mas, mesmo adotando tais medidas, não se elimina por completo eventual envolvimento em dano ambiental, mas restringirá e minimizará os riscos envolvidos.

Dependendo de quem e em que perspectiva se analisa os impactos provocados por hidrelétricas, pode-se contabilizá-los como positivos ou negativos. Dessa forma, a hidreletricidade é um dos mais importantes paradigmas ou paradoxos da economia ambiental.

3.1 Impactos positivos
Visões reducionistas e radicais são incapazes de analisar novos projetos hidrelétricos, principalmente quando se deve levar em conta a melhoria da qualidade de vida das maiorias. Quanto às minorias prejudicadas, faz-se necessário, dentro do possível, dar-lhes todas as condições de reconstituírem suas condições de vida originais. O mesmo vale para as questões ambientais, que têm tido normalmente um tratamento superficial em relação aos impactos que provocam. A seguir os principais pontos positivos desses empreendimentos.

1 – A hidreletricidade é uma fonte renovável de energia. Utiliza a energia de água corrente para produzir eletricidade, sem contudo reduzir sua quantidade,. Portanto, todos os empreendimentos hidrelétricos, de pequeno ou grande porte, a fio d’água ou de armazenamento, enquadram-se no conceito de fonte de energia renovável.

2 – Usinas hidrelétricas acarretam aumento da densidade populacional. Uma grande quantidade de trabalhadores chega ao local para participar da sua construção e, depois, para mantê-la em funcionamento. Há necessidade de se criar toda uma infraestrutura incremental para fornecer à nova população residências, escolas, hospitais, telecomunicação, luz elétrica e áreas de lazer. Esses eventos provocam um efeito multiplicador de crescimento da economia local.

3 – Usinas hidrelétricas usam tecnologia conhecida e segura há mais de um século, e sempre incorporam novas tecnologias para ter sobrevida e diminuir custos de operação e manutenção. Os seus impactos são bem compreendidos e administráveis, mediante medidas de mitigação e compensação de danos, previstos em EIA e RIMA. Contribuem para o desenvolvimento sustentável, caso esses estudos de impactos ambientais sejam elaborados em bases científicas, obedeçam a rígidas posturas legais e tenham gestão constante do concessionário.

4 – A operação dos sistemas elétricos depende de fontes de geração rápidas e flexíveis para atender às demandas de pico, manter os níveis de tensão do sistema e restabelecer prontamente o fornecimento após um blecaute, condições essas atendidas pelas hidrelétricas.

5 – Os reservatórios de acumulação oferecem flexibilidade operacional incomparável, já que podem responder imediatamente às flutuações de oferta e demanda de eletricidade. A estabilidade, a flexibilidade e a capacidade de armazenamento dessas usinas possibilitam o emprego paralelo de fontes intermitentes de energia renovável, como energia solar e eólica.

6 – A água dos rios é um recurso doméstico e, ao contrário de combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás), não está sujeita a flutuações de mercado, o que assegura segurança energética e estabilidade de preços.

7 – Os reservatórios das usinas hidrelétricas armazenam água da chuva, que pode ser usada para consumo ou para irrigação. Ao armazenar e reter a água, eles protegem os aquíferos contra o esgotamento e reduzem a vulnerabilidade a inundações e secas.

8 – O ciclo de vida da hidreletricidade produz quantidades muito pequenas de gases do efeito estufa (GEE). Ao emitir menos GEE que usinas movidas a gás, carvão ou petróleo, a hidreletricidade pode ajudar no combate às mudanças climáticas.

9 – As usinas hidrelétricas não produzem poluentes do ar, pelo contrário, melhoram o ar que se respira. Muito frequentemente, elas substituem a geração a partir de combustíveis fosseis, reduzindo assim a chuva ácida e a fumaça. Além disso, os empreendimentos hidrelétricos não geram subprodutos tóxicos.

10 – Uma usina hidrelétrica possibilita usos múltiplos para o reservatório e, via de regra, cria possibilidade de recreação, turismo e melhora o bem-estar da população.

11 – Com um tempo médio de vida útil de 50 a 100 anos, os empreendimentos hidrelétricos são investimentos de longo prazo que podem beneficiar com energia limpa, segura e barata diversas gerações.

12 – Usinas são estratégicas para a segurança energética de uma região. Os locais que têm o privilégio de poder construí-las possuem esse diferencial fundamental para seu desenvolvimento. As grandes usinas recebem compensações financeiras para sanar possíveis danos ambientais provocados pela formação do reservatório da barragem.

13 – Os locais onde se instalam hidrelétricas podem transformar-se em centros de referências: em desenvolvimento de tecnologia de ponta para o setor; na formação de mão-de-obra qualificada; em desenvolvimento de estudos e projetos de preservação da flora e fauna locais; implantar programas de educação ambiental para a comunidade; e no fomento do turismo de lazer e ambiental, a exemplo do que ocorre com a usina de Itaipu.

3.2 Impactos negativos
Os impactos causados por usinas hidrelétricas são sempre motivos de acirrados debates e difícil consenso. Como praticamente qualquer atividade econômica, as hidrelétricas causam impactos negativos, principalmente ao meio ambiente. A grande questão dos cientistas é saber qual a real dimensão desses impactos e como eles podem ser amenizados, já que dentro das fontes energéticas atuais, a energia das águas é considerada fonte renovável e limpa. A seguir os principais pontos negativos desses empreendimentos.

1 – Os primeiros impactos ambientais acontecem já na chegada da empresa construtora. A montagem do canteiro de obras transforma a economia local, com uso intensivo de materiais e energia, que provoca carestia nos preços dos materiais de construção e outros, prejudicando os moradores locais.

2 – O aumento súbito da população que incorpora trabalhadores vindos de fora acarreta vários problemas como acréscimo na produção de lixo e esgoto sanitário, e aumento na circulação de máquinas pesadas que danificam as vias públicas e modificam as características do trânsito local. Os operários, na maioria das obras, são vítimas de condições de trabalho perigosas e insalubres, e os acidentes e mortes são durante a construção são significativos. Os barrageiros provocam o crescimento da violência urbana, com o incremento no consumo de álcool e drogas. A chegada em massa de trabalhadores de outras praças para exercer suas atividades em terras estranhas provoca aumento de gravidez em adolescentes, atraem a prostituição e com ela as doenças sexualmente transmissíveis. os trabalhadores da obra

3 – Antes do funcionamento de uma usina é necessário desviar o curso do rio para formar um grande reservatório. A formação da represa afeta fortemente a fauna e flora locais, pois, de uma hora para outra, a floresta formada durante centenas de anos vira lago. Muitas espécies acabam submersas e, consequentemente, morrem, criando uma espécie de limbo, que compromete o funcionamento das turbinas.

Entre os cientistas há um consenso de que as áreas marginais a corpos d’água, sejam várzeas ou florestas ripárias (ciliares), são áreas insubstituíveis em razão da rica biodiversidade que ostentam e de seu alto grau de especialização e endemismo. Além disso, proporcionam serviços ecossistêmicos essenciais como a regularização hidrológica na atenuação de cheias e vazantes, a estabilização de encostas contra erosões, a manutenção da população de polinizadores e de ictiofauna, o controle natural de pragas, de doenças e das espécies exóticas invasoras.

4 – A implantação de hidrelétricas interfere de forma irreversível no micro clima local, provocando alterações na temperatura, na umidade relativa do ar, na evaporação e afeta o ciclo pluvial. Um muro de contenção segura água outrora corrente e sua regulação passa a ser feita pelo ser humano. O ecossistema in natura com toda sua rica biodiversidade jamais será recomposto. As médias das temperaturas mais altas tendem a ter pequenas baixas enquanto as médias das temperaturas mais baixas tendem a ter ligeiras altas. A quantificação desses impactos ainda é incipiente dada a complexidade que envolve os estudos de mudanças climáticas e de ecossistemas.

5 – Na hidrologia, a priorização para produzir energia cria dificuldades para permitir o uso múltiplo das águas como irrigação, piscicultura e lazer. A barragem altera o fluxo de corrente e a vazão do rio a jusante (abaixo), que causa alargamento do leito original, aumento de profundidade e elevação do nível do lençol freático, criando pântanos. A pressão do peso da água represada pode provocar fortes deslocamentos de terra, prejudicar aquíferos e provocar sismos induzidos, principalmente em terrenos cársticos. Forma-se a montante (acima) uma nova margem que não tem a mesma resistência à água, o que causa erosão e perda de solo e árvores, gerando o assoreamento que afeta a capacidade do reservatório. As barragens impedem o fluxo natural de sedimentos ricos em nutrientes, que auxiliam na fertilização dos solos para produzir alimentos.

A interrupção brusca do fluxo normal do curso do rio provoca diversas mudanças na temperatura e na composição química da água, com consequências diretas na sua qualidade. A água do fundo de um reservatório de uma grande barragem normalmente é mais fria no verão e mais quente no inverno do que a água corrente do rio. Já a água da superfície do reservatório é mais quente do que a do rio praticamente em todas as estações. Essas mudanças de temperatura mudam os ciclos da vida aquática, tais como procriação e metamorfose.

A barreira necessária para viabilizar usinas tranca sua navegabilidade quase que de forma irreversível e pode causar conflitos geopolíticos entre países usuários do mesmo rio. O Brasil tem cerca de 50 mil quilômetros de rios potencialmente navegáveis. O uso das águas para produzir energia permeou as decisões governamentais desde 1940 e criou obstáculos em rios navegáveis. A Usina de Tucuruí bloqueou o rio Tocantins, a Usina de Itaipu, bloqueou o rio Paraná e assim por diante. São Paulo também deslizou para esse caminho, interrompendo toda a possibilidade de navegação no rio Paranapanema, que em um trecho de 929 quilômetros possui 11 usinas hidrelétricas e inúmeros novos projetos. Há no estado de São Paulo uma salvaguarda, o rio Tietê, que resultou na viabilização da Hidrovia Tietê-Paraná, com 2.400 quilômetros.

Na Europa a relação entre os custos de transporte na hidrovia, na ferrovia e na rodovia obedecem a relação 1 : 2 : 5. No Brasil, os transportes rodoviários representam 76% da matriz de modais de locomoção; em São Paulo, 80%. Mas nos Estados Unidos, país da indústria automobilística e das rodovias, somente 38% das cargas viajam de caminhão. O país deve buscar eficiência em sua distribuição modal, ou seja, reduzir a dispendiosa carga rodoviária por meio do maior aparelhamento das hidrovias e das ferrovias.

6 – Há emissões de gases de efeito estufa principalmente em hidrelétricas localizadas em áreas tropicais, por meio da decomposição de árvores acima da água (em áreas não desmatadas adequadamente antes de se encher os reservatórios), as quais emitem gás carbônico (CO2).

7 – Há também a liberação de gás metano (CH4) na zona de deplecionamento (área do fundo do reservatório). Os reservatórios apresentam estratificação térmica, que causa formação da termoclina, localizada entre dois e três metros de profundidade. Abaixo da termoclina, a temperatura diminui e a água abaixo desta camada (hipolímnio) não se mistura com a água da superfície. A água do hipolímnio é ausente de oxigênio e por isso a vegetação da zona de deplecionamento não produz CO2 e sim CH4, que provoca 21 vezes mais impacto sobre o efeito estufa do que o gás carbônico. Conforme a vegetação do fundo do reservatório cresce a cada redução do nível de água, o gás carbônico da superfície é removido da atmosfera através da fotossíntese e o carbono é liberado pela vegetação em forma de metano, quando ocorre novamente a inundação.

8 – O excesso de nutrientes na água, principalmente fosfato e nitrato, ocasiona um aumento significativo na população de algas e de microorganismos decompositores na água, levando a uma brusca redução do teor de oxigênio dissolvido. Esse processo é denominado eutrofização, ocorre de forma natural, mas é potencializado na medida em que se incrementa substancialmente a quantia de efluentes despejados nos rios, oriundos do comércio, indústria e residências. A eutrofização provoca a mortalidade de organismos aeróbios maiores como os peixes, podendo causar também epidemias.

9 – O represamento de águas pode provocar diversas enfermidades endêmicas que assolam as comunidades vizinhas às usinas, dentre as quais doenças parasitárias como a esquistossomose e a malária e em menor escala a febre amarela e a dengue. Isto ocorre porque as barragens e os sistemas de irrigação formam remansos e propiciam um ambiente favorável para a criação e proliferação de insetos, caramujos e outros animais que servem como vetores para o desenvolvimento de parasitas.

10 – A formação de um reservatório provoca mudanças na estrutura dos ambientes aquáticos ao transformar um rio de águas rápidas (lóticas) em um sistema de águas paradas (lêntico) e também ao inundar ambientes terrestres e/ou várzeas e lagoas marginais. Estas mudanças causam alterações nas estruturas da fauna aquática (ictiofauna), principalmente por meio da substituição ou extinção local de espécies. Espécies de peixes reofílicos (aqueles que necessitam de águas rápidas para sua sobrevivência) se tornam mais raras, enquanto espécies de águas lênticas se tornam mais abundantes.

Espécies acostumadas à água corrente têm dificuldades em se adaptar à água quase parada de um lago, onde o nível de oxigenação diminui acentuadamente. A consequência é a proliferação de determinadas espécies em relação a outras. Há uma notável diminuição na quantidade e na qualidade dos peixes, o que causa prejuízos às populações ribeirinhas que têm na pesca a principal fonte de alimentação e atividade econômica. Para tentar amenizar o problema são construídas escadas nas barragens para que os peixes migratórios possam circular na piracema (ciclo migratório). A concepção de degraus é para evitar que algumas espécies morram de exaustão ao tentar repetir o seu fluxo natural de migração.

As escadas, no entanto, podem aumentar os riscos de extinção se funcionarem como uma armadilha ecológica, na medida em que atraem cardumes para ambientes mais pobres e prejudicam sua reprodução. A quantidade de peixes que sobe é significativa e causam um colapso na pesca a jusante dos reservatórios. A piracema também entra em colapso caso os peixes que sobem não desçam depois. Isso ocorre porque os adultos que sobrevivem ao desgastante processo de subida das escadas não encontram locais adequados para a desova ou o desenvolvimento dos alevinos nos ambientes a montante, já que esses locais são ecologicamente mais pobres.

A plasticidade (capacidade de se adaptar a novos ambientes e/ou condições ambientais) dos peixes migradores ainda é pouco conhecida, mas alguns casos de escolha de rotas alternativas de migração já foram identificados. O padrão geral de migração de peixes após a construção de usinas inclui o deslocamento das espécies entre diferentes áreas do ciclo de vida (desova, alimentação, crescimento). Esse deslocamento pode variar desde alguns quilômetros a até 3.500 quilômetros (sistema amazônico). Deslocamentos de espécies migradoras como o dourado superiores a 1.000 quilômetros já foram registrados. Com a interrupção desta rota por uma hidrelétrica, os peixes passam a não ter acesso ou ter acesso limitado às diferentes áreas do ciclo de vida. A repovoação da represa é indispensável.

11 – As populações humanas que habitam as regiões onde a usina será implantada em geral são famílias de agricultores, pescadores ou tribos indígenas, que perdem áreas utilizadas para caça e pesca. Deve-se reassentar essas populações em outras regiões, sem alterar muito suas condições originais de vida ou mesmo melhorá-las, o que raramente ocorre. O deslocamento forçado dessas populações, acompanhado por compensações financeiras irrisórias ou inexistentes coloca-as em confronto com empreendedores que almejam esconder ou minimizar os conflitos para viabilizar suas obras, e têm em vista critérios fundamentalmente econômicos. As populações atingidas, juntamente com os ambientalistas, procuram evidenciar os conflitos, mostrando que há direitos que não estão sendo considerados, e têm em vista critérios ambientais, sociais e humanitários.

No caso da população indígena, essas comunidades dificilmente possuem os documentos referentes à posse de terras. Em sua maioria, eles são reassentados em novas áreas, passam por um longo processo de adaptações culturais e sociais e podem perder sua identidade, pois possuem uma ligação espiritual estreita com a terra natal.

12 – Os impactos causados pelas PCHs em relação às grandes usinas são menores, pois possuem barragens proporcionalmente menores, mas ao se instalar diversas PCHs em um mesmo rio, em sistemas de cascatas, os impactos podem ser proporcionalmente maiores dos causados por grandes obras, principalmente no que diz respeito ao assoreamento. O licenciamento ambiental de PCHs é bem mais simples e, em alguns estados, sequer são necessários o EIA e o RIMA. Obtidos isoladamente, sem levar em conta outras usinas hidrelétricas no mesmo rio ou bacia, os licenciamentos ignoram o conjunto dos impactos socioambientais dos empreendimentos.

Uma resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) diz que usinas com mais de 10 MW de potência devem ter EIA/RIMA. Esse caso é emblemático e dá mostras da confusão que se disseminou no país sobre regras e competências de licenciamento ambiental.

As grandes hidrelétricas podem causar mais estragos ambientais, mas acabam sendo analisadas pelo Instituto Brasileiro do Meio ambiente (IBAMA), e submetidas ao licenciamento mais rigoroso. Já as PCHs costumam ser licenciadas pelos estados, que aplicam suas próprias regras. Muitas vezes, essas regras são mais brandas.

Um exemplo de PCH com grande impacto é a PCH Fumaça (10 MW), construída no município de Diogo Vasconcelos (MG) pela Novellis do Brasil (antiga Alcan Alumínio). A obra deslocou compulsoriamente duzentas famílias com o início de sua operação, em abril de 2003. Pessoas que dependiam da beira do rio para sua sobrevivência e que mantinham uma relação complexa com a natureza (meeiros, artesãos que utilizavam da pedra sabão, faiscadores, diaristas e agricultores) até hoje enfrentam problemas de indenização.

13 – Sítios arqueológicos de rara beleza natural e de importância científica são elementos do patrimônio cultural da humanidade. A perda desses recursos culturais históricos, que variam desde santuários, artefatos e construções antigas, templos, além de recursos arqueológicos tais como fósseis, animais e cemitérios ocorre em decorrência de submersão da área de influência da barragem. Ocorre também devido ao processo de erosão dos solos e das encostas ora frágeis, que expõe essa riqueza à superfície, deixando-a vulnerável a saques e contrabando – um crime de lesa humanidade.

3.3 Exemplos de impactos no Brasil
As centenas de usinas hidrelétricas construídas até hoje no Brasil resultaram em mais de 34.000 km2 de terras inundadas para a formação de barragens; no deslocamento compulsório de cerca de 250 mil famílias, populações ribeirinhas diretamente atingidas pelos reservatórios; e em muitos danos ambientais e sociais.

O maior empreendimento em construção no Brasil é a usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, estado do Pará, cuja obra enfrenta muitos protestos ambientais. A rejeição às grandes barragens é produto de um histórico de erros no setor. O símbolo maior desses enganos é a usina de Balbina, erguida nos anos 1980 no rio Uatumã, no estado do Amazonas.

Balbina, concebida no regime militar na década de 1970 e finalizada em 1989, é considerada a maior tragédia ambiental do país. Inundou uma área quatro vezes superior a Itaipu, incluindo parte da reserva indígena Waimiri-Atroari, para gerar somente 10% da energia de Itaipu. Matou peixes e causou a escasses de alimentos e fome para as populações locais. Nem mesmo o abastecimento de energia elétrica para a população local foi cumprido. Em 1989, após uma análise da situação do rio Uatumã, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) decretou sua morte biológica.

Usina de Balbina e a natureza morta

Os construtores inundaram a área sem retirar as árvores e transformaram a paisagem em um grotesco paliteiro. A madeira em putrefação atrai nuvens de mosquitos e gera metano. Bactérias aeróbicas promoveram a decomposição da matéria orgânica, que acarretou a diminuição da taxa de oxigênio dissolvido na água e provocou a morte de milhares de peixes.

No caso da construção da hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, um exemplo de má administração das questões ambientais na construção, cientistas relatam a fuga em massa de macacos, aves e outras espécies durante os dois meses que durou a inundação do lago de 2.430 km2. A estimativa é que apenas 1% das espécies locais sobreviveu. Mesmo com o remanejamento antecipado de espécies, algumas correm o risco de não se adaptarem ao novo habitat.

Na represa de Sobradinho, 50 mil habitantes das ilhas e das margens do rio São Francisco tiveram de ser reassentadas. Com a construção da represa de Luiz Gonzaga (Itaparica) foi criado um lago de 4.214 km2. Foram submersas sete cidades: Casa Nova, Sento Sé, Pilão Arcado e Remanso, que tiveram as suas sedes transferidas e foram bastante afetados; e mais Juazeiro, Xique-Xique e Barra, que sofreram menos impactos. Desapareceram inscrições feitas por homens pré-históricos nas pedras das margens do rio, ruínas de missões jesuítas e franciscanas e o famoso cais de Petrolândia, construído para o desembarque de D. Pedro II em sua histórica viagem pelo rio São Francisco. Foram retiradas da área que foi alagada cerca de 70 mil pessoas, das quais 80% eram camponeses que abasteciam o mercado regional.

Cidade de Casa Nova (BA), que em 1977 foi submersa pela barragem da usina de Sobradinho
Cidade de Casa Nova (BA), que em 1977 foi submersa pela barragem da usina de Sobradinho

A hidrelétrica de Itaipu, devido à sua magnitude, provocou profundos impactos sociais e ambientais na bacia do Rio Paraná. O principal foi o desaparecimento das 7 quedas da cidade de Guairá, uma das mais belas paisagens brasileiras. Entretanto, é inegável sua contribuição ímpar em fornecimento de energia para todo o país. Além disso, entre as usinas hidrelétricas brasileiras é uma das que mais investe em pesquisas ambientais.

Entre muitas pesquisas realizadas em Itaipu, está a maior série histórica de dados sobre a pesca. Este conhecimento acima da média do sistema se deve em grande parte à participação, nos estudos, da Universidade Estadual de Maringá, através do Núcleo de Pesquisas em Limnologia, Ictiologia e Aquicultura – Nupélia. Este núcleo de excelência, reconhecido internacionalmente, pesquisa há mais de 20 anos os ecossistemas aquáticos da bacia do Rio Paraná.

3.4 Deslizamentos de terra e sismicidade
Dezenas de deslizamentos de terra na China foram atribuídos à construção da hidrelétrica Três Gargantas que cruza o rio Yangtsé. Como tudo na China, os números são estratosféricos: essa obra desalojou 1,3 milhões de chineses, o lago formado afundou 13 cidades de grande porte, 140 de pequeno, 1.352 povoados e 657 fábricas segundo cálculos oficiais. Também 600 sítios históricos desapareceram sob as águas que no pico contou com mais de 18 mil trabalhadores. Como benefício, energia para mais de 50 milhões de chineses.

Em 2003, um mês após ser iniciado o enchimento da barragem Três Gargantas, um deslizamento de terra matou 14 pessoas. Dezenas de outros acidentes aconteceram em 2006, depois que o nível de água aumentou novamente. Já em 2007, um ônibus foi engolido por um deslizamento. Os mecanismos em ação quando o represamento provoca deslizamentos de terra são similares ao que causam abalos sísmicos (terremotos). Mas no caso de tremores de terra, os efeitos acontecem por debaixo da superfície.

Até recentemente o pior terremoto atribuído à atividade de uma represa aconteceu na porção ocidental da Índia, em 1967. Três anos depois de completada a construção da represa Koyna, um terremoto atingiu a magnitude de 6,5, matando 180 pessoas. O fenômeno de terremotos provocados por uma represa é conhecido como sismo induzido por reservatórios e, basicamente, eles ocorrem quando uma represa é construída e seu reservatório é cheio com água, pois a pressão equivalente exercida na terra naquela área muda drasticamente: quando o nível de água chega ao limite, a pressão no solo aumenta; quando o nível de água abaixa, a pressão também diminui. Essa variação causa um estresse no delicado balanço das placas tectônicas debaixo da superfície, podendo levá-las a se mover.

Outro fator é a própria água. Quando a pressão da água aumenta, mais água penetra no solo, preenchendo rachaduras e fissuras no local. Toda essa pressão da água pode expandir essas rachaduras e criar novas fissuras nas rochas, causando instabilidade no solo. Além disso, conforme a água se aprofunda pode agir como lubrificante para as placas rochosas que estão presas apenas pela fricção. Essa lubrificação pode causar o deslizamento dessas placas.

A represa chinesa Zipingpu, tem profundidade equivalente a um edifício de 50 andares e armazena mais de um bilhão de metros cúbicos de água vindos do rio Minjiang. O peso e as características de lubrificação daquela água podem ter desencadeado o terremoto em 2008.

No caso de terremotos, é difícil atribuir culpa a represas. Só um detalhado estudo científico pode apontar exatamente o que acontece debaixo da superfície. Cientistas acreditam que são necessárias mais pesquisas e programas de monitoramentos sísmicos antes de se afirmar que uma barragem está diretamente relacionada a tremores de terra.

Entretanto, o que se sabe é que uma represa não pode causar um terremoto isoladamente. Os fatores de risco, especificamente falhas instáveis, já devem estar no local. Embora sob certas condições do local, uma represa possa causar danos mais cedo do que ocorreria naturalmente, e talvez aumentar sua intensidade. Construir uma represa sobre uma falha geológica conhecida não é recomendado. Esse é o motivo porque muitos cientistas advertem sobre os terríveis resultados na Hidrelétrica Três Gargantas, com a construção sobre falhas em Jiuwanxi e Zigui.

Texto enviado via e-mail por Rodnei Vecchia (Autor do livro “O Meio Ambiente e as Energias Renováveis”) às 18:37 em 12/04/2012.