Fatos Gerais

Simulação – Memória – Ciberficação

Por Marcelo Afonso
Introdução
Tempo, espaço e memória formam o fulcro central do resultado fotográfico. Qualquer fotografia, por maior que seja a velocidade de obturação usada no momento em que foi tirada, traz o indício da evolução do tempo. Ela não é um momento exato no tempo ou no espaço, mas sim uma coletânea de momentos materializados numa cópia, seja ela soft ou hard. A partir do momento em que a fotografia deixa de ser fotografia para ser “tratada” digitalmente, inicia-se um processo contínuo de perda de referenciais e a imagem final não corresponde mais ao contexto original. A memória se perde ou se transforma, e novos conceitos podem ser criados, às custas da morte dos outros. Assim é também a constante substituição das memórias na sociedade humana. Vani Moreira Kenski, em seu artigo “A memória no tempo dos media”, comenta essa constante mudança de referencial a que somos submetidos. “A pulverização e multiplicação de culturas, visões de mundo, comportamentos específicos de determinados grupos e subgrupos, tribos que aparecem e desaparecem com a mesma velocidade, caracterizam um certo modo de viver, performático, efêmero e pontual, muito presente na atualidade. Para a maioria das pessoas, são modismos aos quais elas se aderem ou não, de acordo com suas necessidades de identificação com um determinado microgrupo social. Na memória coletiva, no entanto, a duração efêmera desses grupos não deixa rastros. Esquecidos, são substituídos continuamente por outras formas de ser e de estar no mundo, superados”.

Somos, hoje, inteiramente dependentes da máquina e da eletricidade. O desenvolvimento técnico-científico possibilitou a utilização de instrumentos cada vez mais sofisticados para as atividades mais simples do cotidiano, ao mesmo tempo que o homem passou a desejar a máquina como algo inerente ao seu próprio ser. Tudo isso fruto de um longo processo de aperfeiçoamento técnico que tomou fôlego em diversas fases da história. A criação dos primeiros artefatos pré-históricos, as máquinas romanas, as técnicas do Renascimento, as guerras mundiais, a era das mega-corporações industriais tecnológicas etc. O próprio capitalismo transformou-se num “cibercapitalismo”, um disfarce do sistema tradicional de produção baseado na exploração da mão-de-obra barata e na má distribuição de renda.

Até que ponto podemos discernir o nosso nível pessoal de artificialidade em relação à própria natureza humana? A transformação do homem em máquina é tão rápida que quando percebemos já nos tornamos mais um periférico ligado ao computador. O poder do desenvolvimento maquínico-midiático-tecnológico é tão extraordinariamente grande no fim do século XX que humanos vão cada vez mais se transformando em acessórios, peças suplementares aos equipamentos criados inicialmente pelo próprio homem. E quando nos damos conta disso, percebemos que nos tornamos menos humanos que eles.

Homem e máquina, porém, não podem existir um sem o outro nas cidades tecnotrônicas de hoje, mesmo que isso gere inúmeros problemas sociais ou psicológicos. Não há nada na cidade de hoje que não passe ou tenha passado por algum tipo de equipamento tecnologicamente elaborado. E as que mais se desenvolveram foram as tecnologias de comunicação para transmissão rápida, dirigida e eficiente de informações que atingem em cheio as mentes de qualquer um, em casa ou na rua.

Quais são as discussões possíveis sobre o convívio constante entre homem e máquina? Quais as novas relações sociais que surgiram daí? Por que existe hoje tanto fascínio pela tecnologia? Qual o futuro do homem? E da máquina? O mundo real está conseguindo ganhar da ficção científica em originalidade e aberrações, e ninguém pode saber com absoluta exatidão os limites dessas especulações.

A criação da máquina
O homem, mesmo na pré-história, já esboçava a usa futura relação com a tecnologia. Do preparo dos pigmentos para pintura e da criação de ferramentas de pedra à construção de suportes ou escadas para se atingir partes de difícil acesso, o homem pré-histórico desenvolveu equipamentos primitivos mas eficientes. Progressivamente, elementos maquínicos foram se incorporando no cotidiano humano na busca constante pela diminuição de esforços físicos, mentais e aumento de conforto. Algumas civilizações desenvolveram, já em tempos remotos, inúmeras tecnologias construtivas que surpreendem até os olhos atuais. Foi com o auxílio de equipamentos mecânicos que se ergueram construções extremamente complexas como as egípcias, incas, greco-romanas etc., cada uma com tipos específicos de tecnologia.

Foi, porém, somente com a invenção da máquina a vapor no século XVIII que teve início a grande revolução das máquinas. E com a chegada da eletricidade, o homem estaria definitivamente fadado ao convívio com equipamentos tecnológicos de todas as espécies. O sistema capitalista de produção e sua necessidade constante de aumento de produção em menor tempo foi o que mais impulsionou o aprimoramento tecnológico até o século XX. Ao mesmo tempo, criava-se um desejo de consumo baseado principalmente nas tecnologias de mídias de comunicação de massa. O desenvolvimento da técnica fotográfica, a sua utilização pelo cinema e a chegada da televisão revolucionaram a maneira de se ver. O mundo passou a ser representado e simulado através de máquinas de criação de imagens, transpondo a realidade para uma tela bidimensional.

O maquinário comunicacional transformou-se no instrumento mais poderoso de incentivo ao consumo de si próprio e de outras máquinas. O início do século XX foi marcado pelo desejo da modernidade, que passava necessariamente pela indústria de equipamentos. O fascínio, nesse período, estava sobretudo voltado aos empreendimentos automobilísticos, eletrodomésticos e imobiliários. A modernidade podia ser reconhecida nos modelos dos grandes carros norte-americanos que, por sua vez, estacionavam na frente dos arranha-céus que apareciam por toda parte, símbolos de um capitalismo que crescia desenfreadamente, baseado no consumo de produtos industrializados. Máquinas de todo tipo invadiram às casas urbanas americanas após o término da Segunda Guerra, nascendo assim os sonhos de consumo e a difusão pelo mundo do american way of life.

O fascínio maior era, até então, voltado aos equipamentos que exerciam algum tipo de atividade mecânica, aqueles que eram capazes de deslocar pessoas em alta velocidade ou de construir pontes e túneis que facilitassem esse tipo de transporte. A televisão chegou para que esses desejos fossem estimulados ainda mais. Contudo, seria a própria T.V. que ajudaria a transformar esse padrão.

O mundo urbano começou a ficar caótico, transformando-se num amontoado de máquinas que logo ficavam ultrapassadas funcional e esteticamente. As tecnologias comunicacionais passaram com isso a desempenhar um papel mais importante que o anterior. A partir do fim da década de 70 o mundo inicia gradativamente o seu processo de digitalização, principalmente com o aperfeiçoamento do computador (que nos anos 90 seria o responsável por uma nova revolução tecnológica). A cidade deixava de ser mecânica para se tornar eletrônica. Já que a vida fora de casa ficou repleta de perigos e inseguranças constantes, conseqüência da (des)organização caótica do meio urbano e das relações entre as pessoas que nele habitam, descobriu-se na televisão e no computador a solução para esses problemas, transpondo-se o convívio cotidiano para a tela. “No final do século, com a tendência de os meios de comunicação reterem as pessoas em casa e reduzirem com isso a ida aos cinemas e o povoamento noturno, as cidades voltaram mais longe: à solidão medieval”.

Hoje vigora o desejo comum de se ter o computador mais veloz, o aparelho de T.V. com mais polegadas e maior definição, o telefone celular menor e mais eficiente, enfim, a possibilidade ampla de se viver fora da realidade física, evitando-se assim os conflitos e problemas correntes no mundo real mas transpondo essas mesmas preocupações para as relações sociais virtuais.

O escritor Isaac Asimov (1920-1992) criou as “Três Leis da Robótica”, “um paradigma para a construção de robôs na ficção científica, especulou que o modelo antropomórfico destas criaturas denuncia o desespero humano frente à solidão. Os homens, pelas mãos dos projetistas de robôs, buscariam inconscientemente na forma humana dessas máquinas uma companhia que, de alguma forma, julgam ideal”. Segundo as “Três Leis da Robótica”, “1. Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal; 2. Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que contrariem a primeira lei; 3. Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a primeira e a segunda leis”. O homem criando leis para as coisas que cria. No entanto, a partir do momento em que esses seres artificiais tomam consciência da auto-existência, automaticamente geram também suas próprias leis, que não são mais as do homem, inclusive podendo contradizer às humanas. Surge então uma situação paradoxal de conflito entre homem e máquina, uma das maiores apreensões e angústias previstas para o século XXI.

Segundo Ciro Marcondes, “a sociedade cibernetizada corresponde a uma vivência em que as relações com o outro passam necessariamente pelo computador e pela rede. Além disso, os jogos, os trabalhos individuais e profissionais encontram seu lugar de realização na tela. Visto de forma mais ampla, é uma maneira de as sociedades se organizarem em que os ambientes, as peças do mobiliário e mesmo as pessoas são conectados entre si e com sistemas administradores gerais que criam uma nova forma de organização, supervisão e controle”.

O impacto cultural resultante dessa visão recriou o cotidiano e os modos de vida da sociedade do fim do século XX, trazendo consigo a manifestação de conceitos como globalização, transnacionalismo, ecocídio, mass media, pós-modernidade etc., e todas as suas respectivas problematizações.

Grandes corporações passaram a dominar o cenário da produção mundial de tecnologia e informação. O mercado se monopolizou nas mãos de determinadas facções empresariais, concorrentes entre si, com os mesmos objetivos de implementação de elementos consumíveis artificiais, transformados em novas demandas. O desejo pela máquina atinge uma intensidade paranóica, uma espécie de vício cujo torpor principal manifesta-se através da ligação direta tela-mente. “Existe, sem dúvida, muito de fetiche na atual relação do homem com as máquinas. À medida que estas últimas se tornam cada vez mais atraentes e cada vez mais amigáveis, o seu efeito tende a se tornar sedutor, talvez mesmo lisérgico, sobretudo a um público desprovido de inquietações intelectuais e de um lastro cultural mais amplo. As pessoas se deliciam (ou até mesmo se viciam) apertando botões compulsivamente, enquanto observam resultados em termos de movimentos mirabolantes numa tela de monitor e essa simples atividade já é suficiente para entretê-las”. As grandes filas nas lojas de informática para a compra de lançamentos de novos programas de computador, por exemplo, são um reflexo dessa “vontade de máquina”.

A cultura se tecnotronizou por um processo legitimado pelo tradicional sistema capitalista de produção, que, na era da informação acelerada, disfarçou-se de cibercapitalismo. O fascínio pelas novas tecnologias trouxe consigo uma busca do esteticamente perfeito, do limpo, do eletrônico (e não do mecânico), da glorificação da imagem, conceitos que devem ser obedecidos por todos aqueles que querem se tornar cidadãos tecnotrônicos do século XXI. Segundo Ciro Marcondes, “a ideologia do puro, do certo, do exato, do positivismo prático renasce lívida e fulgurantemente na era tecnológica. Sua rentrée aparece emoldurada do fascínio das novas tecnologias e do entusiasmo e empolgação dos novos media. Temos aí uma nova geração do futurismo. Naquela época, o endeusamento da técnica fechou com o fascismo mussolinista; hoje o neofuturismo das telas fecha com o tecnofascismo do virtual”.

A busca de modelos ideais, verificada em projetos científicos como o Biosfera II, o Genoma e o Artificial Life trazem consigo uma releitura dos valores estéticos positivistas, segundo os quais “a imaginação artística deve ter por inspiração o sentimento, por base a razão, e por fim a ação. Isso significa que ela não poderia afastar-se da realidade definida pela ciência, ao mesmo tempo em que devia buscar afetar a política, mediante a idealização dos valores e das pessoas consideradas modelos para a humanidade”. Essa idealização do ser perfeito trouxe consigo estereótipos e modismos, considerados muitas vezes como pós-modernos, que se transformaram em bens de consumo almejados pelo homem da sociedade cibernética, legitimados pelos ideais neofascistas e neopositivistas (ou melhor tecnofascistas e tecnopositivistas) incorporados na cultura do capitalismo tecnológico.

O mundo fiísico e suas idéias se numeralizaram. O computador chegou como o principal mecanismo de reprodução, transformação e multiplicação de objetos tirados da vida real, transferindo-os para o universo digital e depois arremessando-os de volta à realidade táctil com uma outra cara.

Enfim, o resultado de séculos de transformações técnico-científicas, acompanhadas dos processos históricos, políticos, econômicos e sócio-psico-antropológicos, verifica-se hoje no cotidiano das urbes tecnotrônicas, onde uma cultura voltada para a máquina criou (e recriou) novos elementos artísticos, representativos de todo esse processo de ciberficação global.

A imagem desempenha um papel primordial nessa sociedade. Vivemos na era da virtualidade dos mundos representados como criações rudimentares (rudimentares por enquanto) de uma nova dimensão. Aos poucos o ser humano foi se virtualizando, procurando fora de si aquilo que não conseguia obter em seu interior, projetando todos os seus anseios e aspirações para a efemeridade do ciberespaço. Tudo isso às custas de substituição dos antigos padrões. Temos agora imagens no lugar de objetos e máquinas no lugar de homens. “Hoje, com a industrialização da imagem, a imagem pensa em nosso lugar. Havíamos feito da imagem nossa morada, doravante ela faz de nós a sua morada, uma morada onde o hóspede, há muito tempo passou a ser um convidado indesejável”.

Com a representação dos significados universais através de imagens, o sujeito também passou a ser representado, isto é, a imagem reproduz objetos e se autoreproduz como extensão das próprias interações dos homens entre si e com o mundo em que vive, criando assim uma realidade paralela, icônica, onde tudo é possível. A imagem passa a ser mais real que o objeto que a originou, mais humana que os humanos. “Desde o momento que a imagem passou a se reproduzir, ela passou a reproduzir o sujeito: a imagem na era da sua reprodutibilidade técnica é a imagem na era da automatização do sujeito”. Philippe Quéau em seu ensaio comenta a esquizofrenia criada na sociedade contemporânea em torno de sua relação com a imagem e a virtualidade. “Formas diversas de esquizofrenia ou de solipsismo poderiam sancionar um gosto demasiado pelas criaturas virtuais com as quais cada vez mais devemos conviver”.

O homem, ao criar coisas que adquirem vida própria, pensa que criando leis manterá o controle da situação, sendo que não consegue nem resolver os seus próprios problemas de organização social. “Entre os anos 70 e 80 dez operários japoneses foram mortos por robôs. No primeiro caso, um trabalhador morreu em Osaka quando um robô esmagou sua cabeça. A explicação para o comportamento agressivo incluiu poluição eletromagnética…”. A próxima etapa, provavelmente, será a criação de ciberpsicólogos para cuidarem da personalidade das máquinas. O homem continua aplicando os seus costumes tradicionais a algo que não é mais humano. Quando as máquinas possuírem uma psiquê própria, como os replicantes de Blade Runner, não haverá solução humana para os eventuais problemas que isso traga. Esse é o maior medo de fim de século em relação ao avanço tecnológico.

Enquanto isso a mídia produzida pelo equipamento propagandístico das grandes corporações políticas e empresariais, dá continuidade ao processo de desumanização do homem. A perda de identidade – ou a criação de novas identidades, agora simulacros – permanece, ainda que com uma maior descentralização promovida pela tão falada globalização econômica. Os anos 90 têm sido caracterizados pela mídia como a década da liberdade de impulsos, onde a criatividade vale mais que a burocracia empresarial. Porém, o homem que se diz criativo hoje tem toda a sua estrutura baseada na própria mídia/moda, promovendo um círculo no qual a mediocridade se recicla gerando mais mediocridade, enquanto a manutenção do poder é garantida nas mãos dos ainda grandes burocratas de negócios. Simula-se a criatividade que na verdade é o próprio simulacro do domínio capitalista.

A máquina, ao mesmo tempo que armazena e disponibiliza informações, as transforma e recicla, numa situação paradoxal que origina objetos hiper-reais contendo universos simulados em si mesmos. Enquanto cada objeto dispõe de seu próprio mundo de signos, sua noosfera particular, outras máquinas são capazes de decodificar e ler tais signos, que já não mais fazem parte de suas referências contextuais originais. São máquinas de leitura de simulacros, com a função de reordenar os elementos simbólicos cuja origem fora perdida nos tempos, criando então um outro todo, constituído de diversas partes, um simulacro generalizado formado por simulacros menores, que por sua vez foram retirados de outros simulacros, na espiral ininterrupta do desaparecimento da realidade.

O que ocorre, porém, é a duplicação do mundo num simulacro que contém em si as mesmas desigualdades e problemas que nos afligem na vida real. Mesmo quando se criam ambientes ficcionais, inexistentes materialmente, a estrutura ideológica e social real é de alguma maneira transportada para eles.

Com a possibilidade de se criar mundos virtuais e duplicações de objetos reais em objetos digitais, aumentam as pesquisas sobre a replicação de seres reais em cópias também reais, isto é, além de duplicar objetos inanimados, torna-se viável a clonagem de seres vivos, simulados numa cópia geneticamente idêntica. Hoje a realidade se inspira na ficção mais do que a ficção na realidade. Os processos de clonagem tiveram um enorme desenvolvimento de suas pesquisas nas décadas de 80 e, principalmente na de 90. Além de duplicar os seres vivos existentes no planeta, os pesquisadores vão em busca da clonagem de animais que até mesmo já foram extintos, como os dinossauros, através de fragmentos contendo DNA. Na era da reprodutibilidade técnica tudo pode ser duplicado com a conseqüente perda de referenciais fixos. Isso gera uma ausência de contextos históricos e de memória, abrindo caminho para a manipulação ideológica através da implantação de novos referenciais, fornecidos “gratuitamente” para substituir os originais. Os avanços na área de bioengenharia e, conseqüentemente, das pesquisas relativas à clonagem, são os melhores exemplos de que vivemos numa era de simulacros.

O computador nos dá a possibilidade da transformação de elementos reais em números, pixels e equações fractais. Tudo é digitalizável e, com isso, manipulável. Um objeto do mundo real, por exemplo, possui uma certa forma, uma função, uma memória, um contexto original, um elenco de significados, enfim, uma identidade própria. Esse objeto pode ter sua imagem digitalizada, bi ou tridimensionalmente e transposta para a máquina. A partir daí o computador modifica completamente as suas características, não só físicas como também simbólicas. Mesmo que este objeto seja novamente materializado, com as mesmas dimensões e características físicas iniciais, através de máquinas escultoras, por exemplo, ele já perdeu completamente o seu significado original, adquirindo um novo, uma nova memória, um novo contexto e novos referenciais. Caso o mesmo objeto na sua forma inicial seja fotografado ou tenha sua imagem impressa após digitalização, o que se gera é um outro objeto, com funções e características completamente diferentes das originais. Nos dois casos, o resultado final é uma simulação do elemento utilizado inicialmente e sua total resignificação. Tudo, hoje em dia, está passando por esse processo. O exemplo utilizado baseia-se no computador, mas a televisão é também um meio muito explorado para a execução desta tarefa, a de destruição da realidade e a criação de hiper-realidades paralelas, que podem ter diferentes utilizações sociais.

Segundo Vani Moreira Kenski, ao criar o computador, o ser humano descobriu um auxiliar da memória humana, um complemento de sua própria memória ao qual poderia delegar ações que ampliariam as capacidades cerebrais comuns. Contudo, transportando-se idéias para a máquina, essas idéias, como os objetos digitalizados, adquirem novo passado, novo contexto e novos significados, que poderão também ter usos diversos. A máquina, desse modo, executa o papel de copiadora, transformadora e geradora de conceitos, adquirindo assim uma nova função, até mesmo criativa. Inúmeros são os experimentos sobre o poder de geração de idéias e criatividade dos computadores. Há experiências que fazem com que a máquina crie poesia, música e arte em geral. No entanto, na maior parte das vezes, os computadores, programados por seres humanos, não passam de máquinas de repetir e copiar tarefas e raciocínios preestabelecidos, tipicamente humanos. A criatividade maquínica ainda está longe de ser usada plenamente mas com certeza os avanços técnico-científicos levarão a esse momento.

Conclusão
Nos dias de hoje, a simulação está sobrepondo-se à realidade numa escala que chega a atingir a esquizofrenia. Não sabemos mais no que acreditar então acreditamos no que vemos. A representação do real transforma-se no próprio real e o mundo se torna um imenso fractal criado pela universalização dos clichês icônicos e padronização das idéias. A crítica está no fato de que diariamente somos bombardeados com implantes de memória através da mídia, ferramenta utilizada para se filtrar a recepção do “mundo real” e decidir por nós o que deve ser lembrado ou esquecido.

A divulgação científica deve tomar cuidado para não cair nas garras da mídia e atuar apenas como mais um de seus instrumentos de perpetuação dos modelos tradicionais de consumo capitalista. Ao passar pelo crivo das grandes corporações de industrialização comunicacional, a notícia científica pode seguir rumos e objetivos diversos, podendo ser usada “para o bem ou para o mal”. Por isso a necessidade de maiores discussões sobre a atuação do jornalismo científico na sociedade de hoje, para que a divulgação científica não se torne mais um instrumento voltado ao desenvolvimento de pesquisas que interessem somente ao lucro de grandes empresas. A divulgação científica deve servir democraticamente a todos os cidadãos; conhecimento divulgado gera mais conhecimento. Caso a mídia continue distorcendo, manipulando e divulgando apenas aquilo que interessa aos seus patrocinadores, viveremos constantemente num mundo de simulação no qual só com uma tomada de consciência geral, através de movimentos coerentes, poderemos acabar com as desigualdades sociais e intelectuais.

Bibliografia
Atrator Estranho. “Visual urbano e cidade digital”. No. 7, dez. 94.

CAPOZOLI, Ulisses. “Homem não será modelo para robô do futuro”. IN Caderno Especial de O Estado de São Paulo, 14 de fevereiro de 1993.

CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

KENSKI, Vani Moreira. “A memória no tempo dos media. IN Atrator Estranho – Memória, anamnese e lembrança, Ano VI, Nº 30, NTC/ECA-USP, 19-?.

MACHADO, Arlindo. Máquina e Imaginário. São Paulo, EDUSP, 1996.

MARCONDES FILHO, Ciro. SuperCiber. A civilização místico-tecnológica do século 21. Texto introdutório para o Ciclo Internacional de Eventos e Debates “SUPERCIBER”, São Paulo, Ática Shopping Cultural, junho de 1997.

PARENTE, André (org.). Imagem-Máquina. A era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro, Editora 34, 1996.

Marcelo Afonso é historiador formado pela FFLCH/USP, webdesigner e analista ambiental do Ibama no Parque Nacional da Serra da Capivara (PI).

Fonte:
http://www.eca.usp.br/nucleos/filocom/existocom/ensaio7a.html