Física

O Movimento Absoluto e a Física de Newton

Por: Alberto Mesquita Filho

1. A existência (ou a realidade) do movimento
A existência do movimento é um fato constatável. Por exemplo, ao escrever este artigo noto que o indicador, a assinalar onde deverá entrar a próxima letra na tela de meu computador, move-se em relação à página do Editor de Texto.


Figura 1: Movimento do indicador de posição
a mostrar onde deverá entrar a próxima letra
a ser digitada no Editor de Texto.

Ao parar de digitar o indicador fica piscando, mas permanece em repouso em relação à página, como que a esperar que eu digite a próxima letra. Mas… e em termos absolutos? Existe um movimento absoluto? A resposta, quero crer, comporta duas versões. Estudaremos neste tópico uma das versões, deixando a outra para o próximo item.

Numa das versões, digamos a VERSÃO 1, poderíamos dizer que o indicador move-se em relação à página, ou então que a página move-se em relação ao indicador. Uma destas situações, ou até mesmo ambas, seria observada, qualquer que fosse o referencial adotado. Sob esse aspecto, o movimento por si só seria algo absoluto. Não obstante, esse caráter absoluto não seria uma propriedade dos objetos [*], mas sim algo a relacionar-se com o referencial, ou seja, com a postura do observador. Como o observador sou eu, e estou vendo a página como se estivesse fixa, digo que quem se move é o indicador. Neste caso não podemos afirmar que o movimento do indicador ou da página é absoluto, mas podemos garantir que um dos dois (o indicador ou a página) está em movimento em relação ao outro. Ou então, que os dois estão em movimento em relação a um terceiro objeto qualquer a acompanhar o observador. Digamos, neste último caso, que a minha cadeira estivesse oscilando lateralmente. Parece ficar claro que, mesmo aceitando-se esta relatividade, nem tudo neste suposto mundo seria relativo. Existe pelo menos um dado absoluto a nos garantir a existência daquilo que pode ser interpretado como sendo um movimento relativo.

Pensemos nos objetos A e B apresentados na figura 2 e que poderiam ser duas naves espaciais situadas no espaço sideral. Na figura 2 à esquerda elas estão representadas uma ao lado da outra e vamos admitir que assim permaneçam no decorrer do tempo. Um observador fixo a uma das naves, dirá que ambas estão em repouso, enquanto outros observadores poderão afirmar que ambas estão em movimento, mas todos concordarão que uma das naves está em repouso em relação a outra.


Figura 2: Explicação no texto

Suponhamos agora que uma das naves esteja em movimento em relação a outra e que um observador, fixo à nave B, descreva o conjunto como mostrado na figura 2 à direita, qual seja, com a nave A em movimento e afastando-se de B numa direção determinada (para cima da figura, no caso apresentado). Neste caso, outros observadores, situados em outros referenciais, descreverão o sistema com outras palavras. Dependendo do referencial, afirmarão que um dos corpos (A ou B), ou ainda ambos, estarão em movimento. Mas em nenhum caso chegarão a afirmar que as duas naves estão em repouso, seja em relação a si (observador), seja uma das naves em relação a outra (repouso relativo). Conseqüentemente, neste caso existe uma característica absoluta e a diferenciar esta condição daquela apresentada na figura à esquerda, onde em um dos referenciais A e B estão concomitantemente em repouso.

Tanto neste caso (figura 2 à direita) quanto naquele apresentado inicialmente (indicador / página – figura 1), e raciocinando fisicamente, ninguém poderá contestar a seguinte verdade: Algo está se movendo, qualquer que seja o referencial da observação. Portanto, e sob esse aspecto, o movimento existe num sentido absoluto, sendo relativo apenas quando pensamos em descrever em qual dos objetos esta propriedade foi constatada. O movimento não seria uma propriedade da matéria em si, mas algo mutável e a depender da postura do observador. Talvez fosse possível negar este movimento absoluto, mas creio que cairíamos numa filosofia a se opor ao existencialismo (no caso, a se opor à hipótese da existência do movimento), e não será pretensão nossa evoluir nesta direção. Ao que parece, Berkeley chegou a propor algo desse tipo, se não com relação ao movimento, talvez com relação a um ou mais dos essenciais que estamos considerando (espaço, matéria e movimento).

A VERSÃO 1 trabalha portanto com a realidade do movimento (realismo) e/ou assume a existência do movimento (existencialismo) sem porém se opor ao relativismo. Segundo esta versão, e para a descrição do processo, seriam suficientes três hipóteses existenciais: espaço, matéria e movimento (ou tempo). Sequer será necessária a introdução do construto matemático força, haja vista que, nestes casos particulares, uma vez instalados os movimentos, os objetos são deixados ao sabor da inércia.

Por outro lado, e como veremos oportunamente, toda a aparente fragilidade epistemológica do modelo mecânico newtoniano reside principalmente nesta sua virtude matemática: a de nos dar a falsa impressão de que princípios mais fundamentais seriam desnecessários. Isso chegou a ser muito bem colocado por Newton na Introdução do Livro III (The System of the World) dos Principia, com as seguintes palavras:

Nos livros precedentes eu apresentei os princípios de filosofia que não são, contudo, filosóficos, mas estritamente matemáticos ¾ou seja, aqueles sobre os quais o estudo da filosofia pode se apoiar. Esses princípios são as leis e as condições dos movimentos e das forças, os quais relacionam-se especialmente com a filosofia. Mas, a fim de evitar que esses princípios possam parecer estéreis, eu tenho ilustrado a apresentação dos mesmos através de alguns escólios filosóficos (i.e, escólios relacionados à filosofia natural), considerando tópicos que são gerais e que parecem ser mais fundamentais para a filosofia, tais como a densidade e a resistência dos corpos, os espaços vazios e o movimento da luz e do som. [1]

Parece-me que Newton está assumindo que os princípios matemáticos, de alguma maneira, retratariam a realidade experimental, ou seja, descreveriam a natureza como ela se nos aparenta ser. Em vista disso, poderíamos nos apoiar nestes princípios matemáticos para construir nossa filosofia natural. Essa filosofia natural, no entanto, implicaria na busca pelas causas a justificarem a realidade experimental, e essa busca estaria sendo apresentada e/ou estimulada nos escólios de seus três livros que compõem os Principia [2]. Conduta semelhante Newton adota em sua Óptica [3], apenas que, ao invés de escólios, reuniu todas essas pendências na Óptica III, através de 31 questionamentos, onde aponta os caminhos possíveis para suas soluções. É bem verdade que, na óptica newtoniana, a matemática, associada à experimentação, não tem esse poder de nos iludir quanto à desnecessidade de uma conceituação mais geral e aprofundada de seus construtos, o que ocorre no estudo da mecânica (força, energia etc).

Bibliografia:
[*] É importante assinalar que o “indicador” não é um objeto a não ser no terreno das virtualidades eletrônicas, tendo sido aqui apresentado apenas como uma ilustração didática.

[1] NEWTON, Isaac: Principia – Mathematical Principles of Natural Philosophy (Third Edition, 1726), A New Translation by I. Bernard Cohen and Anne Whitman (1999), Berkeley, Univ. of California Press, p. 793.

[2] Os Principia têm 48 escólios.
[Segundo o dicionário eletrônico Houaiss para a língua portuguesa, escólio é um comentário feito para servir ao entendimento dos autores clássicos ou, ainda, breve anotação sobre algum texto com a finalidade de explicá-lo ou torná-lo mais claro, mais compreensível.] [3] NEWTON, Isaac: Opticks (Based on the fourth edition, London, 1730), Dover Publications, Inc., New York, pp. 339-406.

Autor:
Alberto Mesquita Filho

Fonte:
http://www.ecientificocultural.com/ECC2/artigos/movab01.htm#ret2e3