Fatos Gerais

Informações para Criação de Divulgação Científica

Breve ensaio sobre as peculiaridades do texto de divulgação científica

Por Mauro Celso Destácio
Ao acompanhar diariamente os diversos campos do conhecimento humano, o jornalismo pode ser considerado, sob uma perspectiva segundo a qual a cobertura dos fatos denotaria a importância real dos próprios fatos (o que nem sempre é verdadeiro, contudo, posto que a prática jornalística costuma se pautar sobretudo pela eficácia do discurso, em especial o proveniente das fontes – o que não nega, necessariamente, a relevância dos acontecimentos), como um termômetro dos graus de interesse da comunidade que forma o público-alvo do veículo jornalístico, bem como da elite dominante nessa comunidade; ou, numa visão mais ampla, do grupo humano cujo pensamento é preponderante na humanidade.

Em se partindo desse pressuposto, intensifica-se atualmente o valor da ciência para a sociedade, pois ela vem se revelando um dos campos de saber e vivência humana com maior crescimento na cobertura jornalística e talvez seja o mais promissor, para o início do próximo século, em termos de mercados editorial e, por conseguinte, de trabalho. Apesar de evidentes – e já clássicas – deficiências que se possam apontar no jornalismo científico brasileiro, como a dependência às fontes de origem estrangeira e as dificuldades na transmissão do conhecimento científico, por vezes hermético, para o público leigo, numa linguagem apropriada, é crescente o espaço dedicado para a ciência pelos jornais diários brasileiros, assim como pelas revistas de informação geral e pela mídia eletrônica.

Neste ensaio, entretanto, serão objeto de análise as revistas voltadas exclusivamente para a divulgação científica, conforme se propõe no projeto de mestrado “Aspectos e tendências para o século XXI do jornalismo científico no Brasil”. Ao contrário dos veículos informativos diários e semanais, em que é viável comparar o noticiário científico com os das demais áreas de interesse humano, nestas revistas é naturalmente impossível realizar esse tipo de aferição. Podem servir como medida para tanto apenas o número de páginas e a tiragem de cada edição – fatores fortemente influenciados por razões financeiras das editoras, o que acaba por invalidar em grande parte esse procedimento de mensuração, mesmo comparando-se com outras publicações das mesmas empresas.

O aumento da quantidade de notícias de teor científico nos jornais e revistas semanais de informação geral indicam, porém, que é preciso estar mais atento à qualidade do noticiário sobre ciência e tecnologia não apenas nesses veículos como também nas publicações destinadas tão-somente a cobrir os eventos de origem científica. No presente texto, serão analisadas matérias das edições de julho e agosto de 2000 das revistas Superinteressante, da Editora Abril, e Galileu, da Globo. Constituirão objeto de análise, para cada edição, uma reportagem, uma nota (respectivamente das sessões Supernotícias e Em dia) e uma resposta a pergunta de leitor sobre tema da ciência (sessões Superintrigante e Sem dúvida) [1]. Os estudo se dará tendo em mente preceitos básicos da divulgação científica, segundo os “mandamentos” propostos por Manuel Calvo Hernando, Oswaldo Frota-Pessoa, a partir de José Reis, e Cássio Leite Vieira, procurando a seguir identificar alguns elementos peculiares ao jornalismo científico no Brasil – tanto os que contribuem para o sucesso do discurso jornalístico em ciência, como os que indicam traços de deficiência.

Os resultados deste estudo serão incorporados à pesquisa de mestrado “Aspectos e tendências para o século XXI do jornalismo científico no Brasil”, ainda em fase inicial. Numa próxima etapa, procurar-se-á inferir, além de outros atributos, algumas estruturas básicas do jornalismo científico, fazendo dialogar as constatações estabelecidas na pesquisa feita a partir das revistas com as idéias apresentadas por especialistas em narrativa e em teorias do jornalismo – como Martinez Albertos, Carl Warren e Teun van Dijk –, assim como pelos autores que estudam o jornalismo científico – entre eles os citados anteriormente. A análise dos textos das revistas servirá, em fase seguinte, à elaboração de propostas de revisão crítica da literatura em divulgação científica.

Os decálogos da divulgação científica
As dificuldades naturalmente enfrentadas pelos divulgadores científicos ao tentar filtrar do discurso científico o que há de mais relevante para o público leigo – devendo transitar de uma linguagem em geral hermética para outra, mais adequada ao leitor comum, sem familiaridade com os termos próprios da ciência – acabaram por conduzir os estudiosos no assunto a elaborar regras básicas sobre como proceder para a obtenção de sucesso na divulgação. Em 1970, Manuel Calvo Hernando propôs, na obra Teoria e técnica do jornalismo científico, um “decálogo do divulgador da Ciência”, com os seguintes preceitos [2]:

I – Antes de tudo, terá consciência de sua altíssima missão: COLOCAR AO ALCANCE DA MAIORIA O PATRIMÔNIO CIENTÍFICO DA MINORIA. Defenderá em seus escritos, suas palavras ou suas imagens o direito de todo ser humano participar da sabedoria e integrar-se na cultura e na civilização, que os manterá unidos num saber comum.

II – O divulgador da Ciência porá todo o seu esmero em difundir os descobrimentos e achados, situando-os em seu próprio marco, valorizando sua importância para a Humanidade e estabelecendo uma posição de equilíbrio entre o que os descobrimentos têm de sensacionais e seu valor como fruto de uma tarefa permanente e coletiva.

III – Enquanto Ciência pura, destacará o fato de que sem ela não há progresso nem Ciência aplicada e exporá a dignidade e a nobreza desse impulso ao que há de mais sagrado no homem: a necessidade de saber e orientar-se. Sem esquecer nunca o duplo aspecto do visível e do invisível, o imanente e o transcendente, na relação do homem com o mundo que o rodeia, e procurando, além disso, que seu trabalho esteja inspirado na fé, na unidade harmoniosa da vida humana.

IV – Combaterá, com todos os meios a seu alcance, a desconfiança das gentes acerca da Ciência e insistirá em dois fatos evidentes: 1º) Os homens da ciência estão obrigados a ir sempre mais acima, mais adiante e aprofundar nos segredos da Criação, e é a própria sociedade humana que, depois, faz mal uso, em ocasiões, dos descobrimentos científicos; 2º) No balanço das contribuições da Ciência ao progresso e ao desenvolvimento da Humanidade, é mínima aquela que, inclusive sem ter em conta o tópico anterior, poderia considerar-se como negativa.

V – Procurará criar consciência pública da importância da investigação científica, da necessidade de que participemos todos nessa nova revolução universal, da rentabilidade da investigação científica e da urgência de uma cooperação mais eficaz por parte do Estado, dos setores produtores e dos serviços, empresários e financiadores e, em suma, da sociedade toda.

VI – Insistirá em que a ciência é cada dia menos uma aventura pessoal e cada dia mais uma vasta empresa coletiva que necessita homens, meios e um clima favorável.

VII – Procurará fazer ver ao público que, apesar do que possa parecer profano aos olhos, a investigação científica não é algo misterioso, secreto, nem aterrador, senão uma obra de sabedoria, de razão, de paciência, de tenacidade e, sobretudo, de ilusão.

VIII – Denunciará a fraude das falsas ciências, que em muitas áreas da Humanidade continuam constituindo obstáculos muito sérios ao desenvolvimento. Os curandeiros estão desacreditados, pelo menos em nossas sociedades ocidentais, mas há necessidade de continuar combatendo a seus equivalentes em outros ramos do conhecimento ou da atividade humana.

IX – Tratará à Ciência com respeito, mas com familiaridade, acentuando a simpatia e os aspectos humanos do cientista. Frente a tanto temor e a tanta desconfiança parece necessário humanizar a ciência ao apresentá-la ao público, e situá-la entre nós de modo íntimo e cordial, sem por isso subtrair-lhe seriedade e transcendência.

X – E tudo isso o divulgador o apresentará de modo mais sugestivo possível em sua dimensão assombrosa e arrepiante, para chegar ao maior número de leitores, de ouvintes ou de espectadores, e utilizando a palavra, o som e a imagem de um modo jornalístico, quer dizer, atual, interessante, direto e sensato. (CALVO HERNANDO, 1970: 59-60)

Numa homenagem àquele que é considerado por muitos o mais importante divulgador científico do Brasil, Oswaldo Frota-Pessoa recomenda, no artigo “José Reis, o divulgador da ciência”, publicado em 1988 na revista Ciência e Cultura, os seguintes procedimentos a serem adotados por quem pretende divulgar ciência, baseando-se em conselhos do próprio Reis:

a. Coragem para dispensar a precisão e apelar para analogias, generalizações e aproximações e coragem de parecer, por isso, ignorante.

b. Ser simples, direto e nobre (como Homero), pois, sem a nobreza, cai-se na caricatura da ciência, no sensacionalismo.

c. Escrever como se falássemos à infância: como se falássemos a nós mesmos, quando crianças.

d. Tratar de um só assunto de cada vez, não se desviar da matéria principal, atraído por algum detalhe.

e. Pensar maduramente no tema e no propósito da publicação, deixar o estudo sedimentar, antes de escrever.

f. Não confundir unidade do tema com monotonia, a qual é bom quebrar com críticas, alusões ou ironias.

g. No relato deve estar presente o humano: a ciência resulta do trabalho dos pesquisadores, daí a importância da presença da história e de considerações filosóficas adequadas.

h. Abdicar do jargão científico: o que interessa são fatos e conceitos, não palavras.

i. Começar pelo fim (senão o leitor dorme antes): usar logo de início o mais importante da informação e não um nariz de cera, passar o desdobramento e deixar para o fim o menos essencial; no entanto, não padronizar demais, não colocar o estilo na forma.

j. Sendo sincero e humilde, o divulgador pode tornar-se um conselheiro.

k. Escrever enxuto, sem rebuscamento nem modismo.

l. Só se escreve com clareza sobre o que com clareza se entendeu.

m. A partir dos fatos do dia, explicar a ciência e desmascarar a pseudociência.

n. Tratar de novidades (o último tipo de satélite), mas também do que é maravilhosamente banal (o desabrochar das flores).

(FROTA-PESSOA, 1988: 530)

Mais recentemente, em 1998, Cássio Leite Vieira elaborou, no Manual de divulgação científica: dicas para cientistas e divulgadores de ciência, os “Dez mandamentos da divulgação científica”:

1. A simplicidade de conteúdo não é incompatível com a riqueza de conteúdo.

2. É fundamental adequar forma e linguagem a seu público.

3. Tente agarrar o leitor já no primeiro parágrafo.

4. Os textos de divulgação científica devem distinguir as especulações dos resultados já comprovados. Atenção com os resultados de pesquisas médicas. Não dê falsas esperanças aos leitores.

5. Cuidado com o excesso de didática. Não trate o seu leitor como um “descerebrado”. Não ofenda sua capacidade de entendimento.

6. Tenha sempre em mente um leitor padrão. Ponha-se no papel dele. Pergunte ao editor qual é o público para o qual você está escrevendo. Não escreva para seus pares acadêmicos.

7. A popularização da ciência não é incompatível com a precisão científica.

8. Artigos de divulgação científica devem ser agradáveis de ler, proporcionar um momento de descontração. Ninguém quer ler um texto com um dicionário de ciências na mão.

9. Evite jargões, fórmulas matemáticas e abreviaturas. Sempre sugira ou envie ilustrações. Elas são essenciais em um texto de divulgação científica.

10. Tente saber antecipadamente o tamanho de seu texto. (VIEIRA, 1998: 39)

Diferenças nítidas são notadas entre os três conjuntos de “mandamentos”. Manuel Calvo Hernando – cuja bibliografia tem se atualizado desde a publicação de seu decálogo, sem que se constituísse, no entanto, um novo grupo de preceitos como tal – sugere ao divulgador uma postura frente à ciência, não se preocupando tão-somente com o texto por meio do qual se fará divulgação científica, mas com uma série de procedimentos para a difusão do conhecimento científico para o público leigo. Simultaneamente, fica a impressão de uma certa ingenuidade em relação ao fascínio exercido pela ciência – algo que pouco se constata nos artigos e livros mais recentes do autor. Já Oswaldo Frota-Pessoa se dirige ao divulgador visando à composição de textos e outras formas de divulgação científica, porém sem se restringir a aspectos técnicos, como faz Cássio Leite Vieira.

As lacunas que eventualmente possam ser apontadas nos “decálogos” (embora Frota-Pessoa tenha feito mais de dez recomendações aos divulgadores científicos) não diminuem a importância desses preceitos. Muitos elementos podem ser deles extraídos e pretende-se, neste trabalho, verificar em que medida alguns deles – os mais destacados – ocorrem nos textos analisados das revistas Superinteressante e Galileu, edições de julho e agosto de 2000. Outras características, não aventadas pelos três autores, podem ser acrescentadas. Entre as reportagens, serão analisados os textos “O Universo é chato como uma tábua” (Superinteressante de julho), “O mapa da origem” (Galileu do mesmo mês), ambas tratando de temas correlatos, da astronomia, “Sorria!” (Superinteressante de agosto) e “Pós-genoma” (Galileu de agosto). Na sessão Supernotícias, destacar-se-ão as notas “Agora é certo. Havia água em Marte”, de julho, e “Um salto de 515 anos”, no mês seguinte. De Em dia, da Galileu, “Do pó e da fumaça nasce a ilha” (julho) e “Crocodilo ancestral” (agosto) serão as notas estudadas. Já entre as respostas a dúvidas de leitores, fazem parte do estudo os textos da coluna Superintrigante “Incesto animal é perigoso” (julho) e “Como funcionam os adesivos que brilham no escuro?” (agosto) e, da Sem dúvida, da Galileu, “O que protege os navios das tempestades em alto-mar?” e “Sonhos eróticos”, respectivamente das edições de julho e agosto.

Algumas peculiaridades
Quatorze foram as características identificadas neste estudo como possíveis de se comprovarem peculiares ao jornalismo científico brasileiro, em especial o praticado nas revistas analisadas. A comprovação de que tais elementos são próprios do jornalismo científico se dará ao longo da pesquisa de mestrado, com a observação de maior quantidade de textos e usando-se de outros procedimentos metodológicos, como entrevistas com especialistas em ciência e em jornalismo e com leitores habituais ou eventuais das publicações examinadas. Para o presente ensaio, a constatação de tais particularides se fará por meio do diálogo entre a bibliografia utilizada – de cujos autores alguns estão citados acima – e o trabalho direto com as revistas de divulgação científica, mantendo-se especial atenção para os itens que confirmam ou negam os preceitos dos “decálogos” de Calvo Hernando, Frota-Pessoa e Leite Vieira.

O recurso ao suspense
Uno de los elementos más vitales, entre los que comparten el teatro y el periodismo, es el suspense: la acumulación de los sucesos hacia un clímax imprevisible. Así como el público teatral se estremece, preguntándose qué ocurrirá luego, el público lector habla y se preocupa por los acontecimientos de mañana en la sucesión de noticias sobre un mismo acontecimiento. El suspense crea y expande el atractivo de la noticia. (WARREN, 1975: 34)

Ele pode aparecer sob a forma de pergunta ou de uma afirmação que não se explica em si mesma. O suspense é, não importa a forma como venha, um recurso utilizado com freqüência pelos redatores científicos. As duas reportagens de julho analisadas, de uma revista como da outra, começam de forma a despertar a atenção do leitor através do suspense.

Na matéria “O mapa da origem”, da Galileu, quatro perguntas são lançadas ao leitor, dando-lhe a sensação de que brevemente, no texto, as respostas lhe serão fornecidas, embora essa expectativa seja quebrada logo a seguir, pois ainda são objeto de pesquisas, conforme explica a reportagem. “Como se formaram as galáxias? Quanta matéria existe no Universo? De que forma o cosmos está se expandindo? Ele se expandirá para sempre ou freará seu crescimento e encolherá, até que todos os astros se esmaguem uns aos outros, provocando uma imensa explosão?” (p. 18, 1º parágrafo).

Enquanto o suspense da matéria da revista Galileu provoca expectativa, em Superinteressante, no texto “O Universo é chato como uma tábua”, desperta-se no leitor um espanto, uma forte e intrigante interrogação vem à sua mente. “Nem toda a luz que chega à Terra é gerada no interior das estrelas.” (p. 62, 1º par.). Então, de onde provém o restante da luz que chega ao nosso planeta? – indagaria o leitor.

Em ambos os casos, o uso do recurso é bem sucedido, pois, como coloca Leite Vieira no seu terceiro “mandamento”, deve-se “agarrar o leitor já no primeiro parágrafo”. O suspense não é, contudo, um recurso que se deva usar exclusivamente nas linhas iniciais de um texto de divulgação científica, nem é garantia de sucesso para a matéria: por um lado, de pouco adiantará se o suspense for bem utilizado, mas o restante do texto diluir a sua eficácia; por outro, o seu excesso pode deturpar o bom entendimento do conteúdo, ainda mais se houver um resvale no sensacionalismo.

A falta de clareza / o excesso de dados
A clareza talvez seja o requisito do jornalismo científico ao qual os estudiosos no tema mais procuram chamar a atenção. Calvo Hernando, embora pareça mais preocupado, no seu decálogo, em realçar a necessidade de aproximar a ciência ao público leigo, recomenda aos divulgadores tratar a ciência com “familiaridade”, sendo necessário humanizá-la ao apresentá-la a esse público, como escreve no nono “mandamento”, e apela ao que ele chama de “modo jornalístico, quer dizer, atual, interessante, direto e sensato” (décimo item).

Frota-Pessoa, por sua vez, é mais explícito, solicitando ao redator em ciência que escreva “como se falássemos à infância”, abdicando dos jargões, sem “rebuscamento nem modismo”. Diz, enfim, que só é possível escrever “com clareza sobre o que com clareza se entendeu.” Leite Vieira, se bem que recomendando “riqueza de conteúdo” e “precisão científica”, apela para a simplicidade e sugere que se evitem os “jargões, fórmulas matemáticas e abreviaturas.”

Não raro os textos de divulgação científica têm seu entendimento prejudicado por trechos que carecem de clareza, mormente com excesso de informações. Em “O Universo é chato como uma tábua” (Superinteressante de julho), detecta-se um período em que a concentração de dados dificulta a compreensão do leitor, pelo menos à primeira leitura: “Manchas grandes implicam a existência de muitos átomos; manchas pequenas, menos átomos. ‘As nódoas que vimos têm tamanho médio se comparadas a simulações anteriores feitas em computador (veja o infográfico). Elas correspondem a aglomerações de matéria contendo 1 átomo de hidrogênio em cada 10 metros cúbicos”, contou Lang à SUPER. ‘Como há setenta anos medimos curvaturas no espaço – como a que o Sol produz à sua volta –, sabemos que essa quantidade de matéria é insuficiente para curvar o Universo. Conclusão perturbadora: ele só pode ser plano.’” (p. 64, 2º par.). Manchas, átomos, grandes, pequenas, nódoas de tamanho médio, simulações, aglomerações, 1 átomo de hidrogênio em cada 10 metros cúbicos, setenta anos, curvaturas, o espaço, o Sol, o Universo… Em apenas algumas linhas, noções e conceitos se misturam inadvertidamente, podendo causar muita confusão. Questiona-se, então, o sétimo preceito proposto por Cássio Leite Vieira: até que ponto a precisão científica é compatível com a popularização da ciência?

Na reportagem da Superinteressante de agosto, “Sorria!”, uma contradição – ao menos aparente –, logo no segundo parágrafo, causa pequenos arranhões a uma matéria que, por outros motivos, como veremos abaixo, demonstra qualidades. O autor, escrevendo sobre o bom humor, afirma que ele “é, antes de tudo, a expressão de que o corpo está bem. Ele depende de fatores físicos e culturais e varia de acordo com a personalidade e a formação de cada um.” (p. 94, 2º par.). Não se percebe, neste trecho, excesso de informação, mas o bom humor fica mal explicado: o que é decisivo, afinal, para a sua ocorrência, o aspecto físico ou fatores culturais?

Todas as observações a respeito da falta de clareza levam a crer que, como declara Frota-Pessoa, não houve um entendimento claro do assunto por parte do autor da matéria de divulgação científica. Se apenas um trecho do texto é afetado e pouco deprecia o restante da reportagem – ou qualquer outro gênero jornalístico –, somente os leitores mais exigentes desistirão de prosseguir na leitura. Caso a matéria, além de pouco clara, esteja imbuída de outros atributos prejudiciais, como o abuso da adjetivação e a inversão da lógica, raros serão aqueles a querer, enfim, entender o que lêem – ou tentam ler.

As analogias / o risco dos clichês
O que dizer de um título como “O Universo é chato como uma tábua”? Alguns dirão: ótimo, a idéia fica clara e permanece à mente dos leitores. Outros condenarão: é clichê. As analogias parecem, portanto, ser uma faca de dois gumes – analogicamente falando. O clichê, todavia, tem serventia, desde que não usado além do necessário. No texto de Galileu “O mapa da origem”, a expressão “mar de fótons” surge nada menos que cinco vezes, em apenas três páginas (20-22). E a palavra “mar” já aparece no infográfico da página 19 – “mar de luz”. E, relembrando: a reportagem nada tem de oceanografia, mas sim de astronomia.

As analogias aparecem com destaque, ainda, à página 64 – primeiro parágrafo – da Superinteressante de julho, na matéria sobre a planura do Universo (“Para explicar como o espaço pode ser curvo, os físicos costumam compará-lo a uma superfície de borracha. Claro que ele não é uma substância – trata-se apenas de uma analogia, mas ela ajuda a entender o raciocínio. Se você tem uma placa elástica lisa e coloca sobre ela uma bola de ferro, sua planura fica abaulada naquele ponto.”), e na reportagem “Pós-genoma”, da Galileu de agosto, logo no parágrafo de abertura, à página 38 (“A decodificação é como escrever um livro de receitas no qual só aparecem os ingredientes, sem as instruções de como misturá-los, se devem ser cozidos, assados ou fritos. Para preparar o jantar, o cozinheiro precisa conhecer os detalhes de cada prato.”).

Ambas as matérias são bem sucedidas no uso desse recurso: a primeira analogia porque pode até mesmo ser experimentada pelo leitor – bastam-lhe uma superfície de borracha e uma bola de ferro –; a segunda pelo fato de remeter ao cotidiano do público, tornando o texto literalmente mais saboroso. Segue-se o conselho de Calvo Hernando: tratar a ciência com familiaridade. Nestes casos verifica-se, ainda, como a precisão científica pode ser compatível com a popularização da ciência, conforme preconiza Cássio Leite Vieira.

As redundâncias necessárias
O texto “Sorria!” (Superinteressante de agosto) é um ótimo exemplo de algo não aventado por quaisquer dos três autores que apresentaram seus “mandamentos” da divulgação científica: chamaremos esse expediente de redundância reforçativa.

Em se tratando de um texto longo, é providencial que algumas idéias se repitam, sem exageros, para que sejam adequadamente absorvidas pelos leitores. À página 94 (segundo parágrafo), lê-se: “‘Um indivíduo bem-humorado sofre menos porque produz mais endorfina, um hormônio que relaxa’, diz o clínico geral Antônio Carlos Lopes, da Universidade Federal de São Paulo. Mais do que isso: a endorfina aumenta a tendência de ter bom humor. (…) A endorfina também controla a pressão sangüínea, melhora o sono e o desempenho sexual.” Duas páginas depois, encontra-se o seguinte trecho: “sabe-se também que a endorfina, liberada durante o riso, melhora a circulação e a eficácia das defesas do organismo. / A alegria também aumenta a capacidade de resistir à dor, graças também à endorfina.”

De tanto se ler sobre a endorfina, e em trechos diferentes do texto, quem esquecerá quão benéfica ela é? Certamente o leitor incorporará a seu cotidiano a idéia de que esse hormônio proporciona uma série de benesses à saúde e, quem sabe, tornar-se-á mais bem-humorado.

O resvale no sensacionalismo / a adjetivação abusiva

Calvo Hernando propõe aos divulgadores, no seu segundo “mandamento”, que estabeleçam “uma posição de equilíbrio entre o que os descobrimentos têm de sensacional e seu valor como fruto de uma tarefa permanente e coletiva.” Entre os textos jornalísticos analisados, nenhum pode ser considerado sensacionalista, mas por não poucas vezes resvalam no exagero no tratamento dispensado à ciência, tratando os achados científicos como acontecimentos simplesmente fantásticos.

O principal sintoma do (quase-)sensacionalismo é a presença excessiva de adjetivos, que em geral vão além das medidas coerentes com os fatos. A reportagem “O Universo é chato como uma tábua” constitui um exemplo notório de texto abundante em adjetivos, prejudicando o conteúdo. Antes mesmo do primeiro parágrafo, o sensacional deixa rastros logo no olho da matéria, à página 62: “Ao analisar com precisão inédita a cintilação produzida (…)”. E segue uma sucessão de qualidades atribuídas às descobertas tratadas na reportagem: “brilho ancestral”, “fantástica radiografia”, “uma visão assombrosa”, “gigantescas bolhas”, “monótona planura de uma pradaria semideserta”. Tudo isso nos quatro primeiros parágrafos, em apenas duas páginas, das quais somente cerca de um quarto é ocupado pelo texto.

O chamamento ao leitor / as tentativas de conquista
Fenômeno interessante é a procura por integrar o leitor ao texto, algo que representa uma função fática empregada pelos redatores científicos em trechos estratégicos de seus textos de divulgação. Ainda na matéria sobre o Universo plano, logo após a primeira frase, citada como exemplo de uso do suspense, duas palavras procuram justificar o espanto do leitor e prendê-lo de vez ao assunto: “Isso mesmo.” É como se o autor da matéria quisesse dialogar com o público. No quarto parágrafo, à página 63, a intenção se torna clara: “Se você leu essa notícia antes e boiou (…), nas páginas seguintes vai entender por que os cientistas acham que as novas imagens podem responder à pergunta do alemão Albert Einstein formulada em 1917”. Na edição de agosto da Superinteressante, a resposta a pergunta de leitor, da coluna Superintrigante, sob o título “Como funcionam os adesivos que brilham no escuro?” (p. 41), assim se inicia: “Você já deve ter se divertido montando constelações no teto do seu quarto”.

Outro expediente bastante empregado pelos redatores científicos é a primeira pessoa do plural. No subtítulo da infografia que ilustra as páginas 64 e 65 da revista da Abril, edição de julho, na matéria sobre a forma do cosmo, lê-se um “Agora sabemos que ele é plano.”

Tais recursos são válidos na medida em que não se procure transformar a matéria num “papo de botequim”, em que o leitor se sinta à vontade demais e prenda sua atenção ao texto mais pela forma do que pelo conteúdo. Todo ser humano deve “participar da sabedoria e integrar-se na cultura e na civilização”, como apregoa Calvo Hernando no primeiro “mandamento” de seu decálogo, mas respeitando a ciência pelo que ela porta de “seriedade e transcendência” (penúltima regra).

Cabe realçar ainda uma outra forma de tentar conquistar a confiança do leitor, sem aludir diretamente a ele. Na nota “Sonhos eróticos”, à página 20 da Galileu de agosto, o leitor, principalmente se adolescente, é de certa maneira tranqüilizado pelo autor do texto, que parece adivinhar os temores de parcela do público jovem: “As poluções noturnas ocorrem para a maioria dos homens e não devem ser consideradas algo sujo ou proibido. São normais, saudáveis e não causam nenhum dano ao organismo. Com o aumento da freqüência das atividades sexuais, elas tendem a cessar.” Alcança-se, assim, um estágio considerado por Frota-Pessoa numa de suas recomendações aos divulgadores científicos: “o divulgador pode tornar-se um conselheiro.”

A inversão da lógica
A típica matéria científica é um artigo sobre “como fazer”, conhecido por qualquer um que fez curso de redação de matérias ou que leu qualquer dos numerosos livros ou artigos sobre redação expositiva. A tarefa do escritor é compreender o “como” ou o “porquê” de algum processo científico ou médico e sua significação, e transmitir isso ao leitor ou espectador com a máxima precisão possível.” (BURKETT, 1990: 71)

Oswaldo Frota-Pessoa é claro e incisivo no nono item do conjunto de procedimentos por ele propostos para o divulgador científico, a partir dos ensinamentos de José Reis: “Começar pelo fim (senão o leitor dorme antes): usar logo de início o mais importante da informação e não um nariz de cera, passar o desdobramento e deixar para o fim o menos essencial; no entanto, não padronizar demais, não colocar o estilo na forma.”

O princípio não é próprio apenas para a divulgação científica, ele é também uma regra básica da prática jornalística, que se aprende nos primeiros anos das faculdades de jornalismo, qualquer que seja a área da atividade humana por ele coberta. Muitas vezes esse preceito – cujo emblema é o lead, o primeiro parágrafo da notícia, e resumo dela, contendo seus principais eventos – tolhe a criatividade dos jornalistas, ainda mais quando se firmam padrões para se escrever essa introdução, o que é bastante comum nos manuais de redação de determinados veículos de comunicação.

Na maioria das revistas essa prática costuma ser ignorada, colhendo-se, muitas vezes, interessantes resultados, agradáveis ao leitor, como já mostrado em tópicos anteriores deste ensaio. No entanto, corre-se o risco de relegar fatos cuja informação é essencial seja transmitida logo nas primeiras frases do texto, para a melhor compreensão de seu conteúdo. Mais uma vez usa-se como exemplo, neste trabalho, a reportagem “O Universo é plano como uma tábua”. Embora no título e no olho esteja expressa a idéia principal, de que se descobriu que o cosmo é plano, um dado importantíssimo só é apresentado com clareza, no texto principal, quatro páginas depois do início: “o céu aparece coalhado de manchas vermelhas, verdes e azuis, que mostram, em ordem decrescente, do vermelho para o azul, onde a luz é mais quente e mais fria. A diferença é minúscula, de apenas 1 milésimo de grau. Mas é decisiva porque os pontos mais aquecidos representam regiões de grande concentração de matéria – quanto mais espremida ela fica, mais esquenta. As áreas menos quentes revelam volumes vazios ou muito rarefeitos.” (p. 66, 3º par.)

No quarto parágrafo da matéria, à página 63, o autor de certa forma confessa que o conteúdo do texto só será de fato entendido se lido até o final. “Se você leu essa notícia antes e boiou – sem compreender nada –, nas páginas seguintes vai entender por que (…)”. A informação sobre as manchas já aparece parcialmente, é verdade, a essa mesma página, mas na legenda da primeira ilustração da matéria: “Em ordem decrescente, do vermelho para o azul, elas mostram onde a luz é mais quente e mais fria.” Como veremos mais adiante, hoje em dia as ilustrações – sofisticadas – não raro remedeiam os pecados do texto principal, porém fragmentando a reportagem.

A ironia e o bom humor
Um texto, para ser bom, tem de ser agradável de se ler – uma obviedade, mas que não custa ser frisada. Cássio Leite Vieira destaca esse requisito, no seu oitavo “mandamento”, assim como Frota-Pessoa volta as armas contra a monotonia, “a qual é bom quebrar com críticas, alusões ou ironias.” Inclua-se nesses recursos também o bom humor, talvez o mais aproveitado, entre esses elementos provocadores de momentos de descontração – e outras sensações, também.

Logo na frase de abertura da nota “Agora é certo. Havia água em Marte”, na sessão Supernotícias de julho, o redator usa da ironia para intrigar o receptor da informação: “Rios volumosos já correram sob o céu amarelo de Marte, e não faz muito tempo.” Quanto tempo? A resposta, mais adiante, embora sem precisão: “O rio fluía até há alguns séculos, no máximo poucos milênios.” Os leitores mais acostumados aos milhões de anos corriqueiros na astronomia talvez não sintam qualquer impacto, mas os demais ou acharão graça desse contraste ou se sentirão decepcionados.

Nada melhor, porém, que o bom humor – bem usado em matéria que trata justamente desse assunto: “Sorria!”, da Superinteressante de agosto. Ao final do segundo parágrafo, à página 94, quando se expõem os benefícios da endorfina, o autor escreve, logo após afirmar que o hormônio melhora o desempenho sexual: “(Agora você se interessou, né?)”. Alia-se, nessa frase, o bom humor e a coloquialidade, chamando o leitor por “você” e finalizando com um “né?”. Na mesma reportagem, no parágrafo inicial, embora não se use o bom humor diretamente, faz-se alusão a algo muito próximo de grande parte do leitorado: o futebol. “Como um palmeirense poderia manter o alto-astral depois que seu time perdeu a final da Taça Libertadores da América? Fácil. É só lembrar que o Palmeiras eliminou o arqui-rival Corinthians nas semifinais da competição.” – e prossegue o jornalista usando um exemplo inverso.

O fascínio da especulação
O jornalismo científico parece ter uma atração irresistível pela especulação, o que a priori não é condenável. A ciência vive das suposições, enquanto não dispõe das certezas, e é natural e saudável que os meios de comunicação compartilhem dessas possibilidades ainda a comprovar. Mas, como diz Leite Vieira: “Os textos de divulgação científica devem distinguir as especulações dos resultados já comprovados.” Constantemente vemos, no entanto, as especulações sobrepujarem as comprovações e acabarem tomando a forma de verdades científicas. O mal talvez esteja no próprio meio científico, e não no jornalístico. O dever do divulgador é, sim, ver com olhos críticos e bom senso o que a ciência lhes tem a oferecer como informação.

Na edição de julho da Superinteressante, tanto a nota sobre água em Marte como a matéria que trata da planura do Universo caem no erro de abrir espaço demais à especulação. O caso mais grave é o do texto da sessão Superintrigante. O que de fato comprova que houve água em Marte? A colocação dos verbos e outras classes de palavras é um denunciativo de que se é levado mais pelas suposições que pelos fatos: “Agora é certo” (no título), “os vales observados só podem ter sido cavados (…)”, “O rio fluía até há alguns séculos”; no infográfico ao lado do texto principal: “a região em que as correntes subterrâneas atingiram a superfície”, “o líquido congelou com o frio”. O autor do texto assume como verdade algo que não pôde ainda ser provado, e se trai em certos trechos: “Não há uma gota aparecendo nas imagens”, “algum líquido, muito provavelmente água.” Embora a suspeita de que tenha havido água no planeta vermelho seja digna de nota, pecou-se ao tratá-la como verdade.

Na reportagem “O Universo é chato como uma tábua”, a transformação de hipóteses em acontecimentos reais já começa pelo título. Sabe-se quão constantes são as reviravoltas que a cosmologia costuma propiciar ao tratar das origens ou formas do Universo. Galileu é mais prudente ao abordar o mesmo assunto. Além de enfocá-lo de maneira diferente, descrevendo o processo que tem levado os cientistas a desenhar o mapa do Universo (em vez de lançar frases taxativas), já começa o texto avisando o leitor de que ainda não existem respostas às questões que ela mesma formula ao iniciar a reportagem: “A resposta para essas perguntas, perseguida obsessivamente pelos cosmólogos neste fim de século, vai depender do resultado de pesquisas que contam com a participação decisiva de cientistas brasileiros.”

Superinteressante, por sua vez, rende-se às constatações ainda incertas e as estabelece como certeza. Mesmo se os estudos indicam que “os raios ancestrais do Big Bang definem com 90% de certeza que o espaço tem a monótona planura de uma pradaria semideserta” (p. 63, 4º par.), é possível afirmar que o “universo é uma tábua chata”, como define a matéria logo adiante? E é prudente dizer que “O Cosmo crescerá para sempre”, na página seguinte? Pode-se até alegar que o texto perde força se não contar com afirmações de impacto, mas será que vale a pena iludir o leitor, em vez de educá-lo, despertando-lhe o senso crítico? Além de serem informações quase sempre sem o mínimo de consistência, as especulações conduzem mormente à fascinação frente à ciência, respaldando a idéia que ela carrega de um ente abstrato e fantástico, ausente de vínculos com o cotidiano do cidadão comum.

A integração das ilustrações
Aponte-se qual o grande veículo de comunicação que, atualmente, ao fazer divulgação científica, dispensa as imagens, as ilustrações, e emprega apenas as palavras para transmitir o saber científico ao público leigo. Existe algum? Se a resposta é afirmativa, que ele nos seja apresentado – é uma raridade.

Praticamente não há jornais ou revistas, no Brasil, que prescindam das imagens para divulgar ciência e tecnologia, a ponto de os textos principais dependerem das ilustrações para transmitir com completude uma idéia ou conceito proveniente dos meios científicos. Conforme já indicamos neste ensaio, a reportagem sobre a forma do Universo mostra como uma ilustração pode fornecer ao leitor a informação chave para se entender com presteza o conteúdo da matéria.

Tem se tornado comum ouvir pessoas dizerem que para compreender determinado assunto ou descoberta lhes basta visualizar e ler as legendas de um infográfico – como têm sido chamadas as sofisticadas ilustrações hoje em dia fortemente presentes nas sessões científicas dos jornais e, principalmente, nas revistas dedicadas a essa temática. Na Superinteressante principalmente, esse tipo de ilustração tem relegado a segundo plano as fotografias, ocorrendo com constância reportagens só com infografias. Na revista Galileu, por sua vez, há um equilíbrio, mas a presença de gráficos com alta carga de informação – e bastante uso de recursos da informática – não é muito menos significativa que na publicação concorrente.

A suposição do prévio saber do público
Uma criança seria capaz de ler, sem interrupções e indagações aos pais ou aos livros, uma reportagem como as analisadas aqui, das revistas Superinteressante e Galileu? Poucas, muito poucas, provavelmente. Se Oswaldo Frota-Pessoa aconselha que se escreva “como se falássemos à infância”, ou “a nós mesmos, quando crianças”, Cássio Leite Vieira, por sua vez, diz que se deve “adequar forma e linguagem a seu público”, não tratando o leitor como um “descerebrado”, e recomenda, ainda, aos divulgadores, que perguntem aos editores “qual é o público para o qual você está escrevendo.”

E pelo que se nota dos textos estudados para o presente trabalho, os redatores de Superinteressate e Galileu seguem os preceitos de Leite Vieira e, de vez em quando, demonstram algum esforço para alcançar a meta proposta por Frota-Pessoa, ao comentar José Reis. O público dessas revistas, enfim, tem como faixa etária mínima os adolescentes, em especial os que cursam o ensino médio, já com algumas noções de física, química e biologia, por exemplo. A palavra “elétron” aparece sem qualquer explicação na resposta à pergunta “Como funcionam os adesivos que brilham no escuro?”, na sessão Superintrigante de agosto (p. 41). Já a reportagem “Pós-genoma”, da revista da editora Globo, supõe que o leitor esteja minimamente informado sobre o Projeto Genoma.

Vale destacar, contudo, certas tentativas interessantes que são evidentes em algumas das matérias examinadas. Na mesma reportagem da Galileu, um quadro intitulado “Bê-a-bá do genoma”, à página 41, usa de eficiente analogia com doses generosas de didatismo – embora seja uma metáfora já gasta nesse tema – para fazer entender a genética. Na edição anterior da revista, um pequeno glossário, à página 21, ajuda a compreender alguns conceitos, se bem que seja insuficiente para dar conta da matéria inteira (“O mapa da origem”). Tais tentativas são exceções e dificilmente fazem com que os textos sejam inteligíveis para o público infantil médio.

A ausência de intenção / a carência de relevância para o leigo
El concepto de “propósito” implica que debemos distinguir entre propósitos e intenciones. Una intención se refiere únicamente a la ejecución de un hacer, mientras que un propósito se refiere a la función que este hacer o esta acción puedan tener. (VAN DIJK, 1989: 85)

“E daí? O que tenho a ver com isso?” Esse pode ser o desfecho, muito além do ponto final do último parágrafo, para algumas matérias de (ou que pretendem à) divulgação científica. Nalguns casos, a falha é parcial, mas noutros termina-se por enterrar o texto, por carecer de significação. Às vezes parece que falta ao autor da nota ou reportagem uma intenção que norteie o texto – sublinhe-se aqui a palavra “intenção”, que difere de “propósito”, conforme estabelece Van Dijk. Outras vezes, o tema da matéria – ou o tratamento que se dá ao tema – tem importância apenas para poucos, e é irrelevante para a maioria, ainda mais quando não há sucesso em entender o conteúdo do texto, permanecendo sem significação para o leigo.

A nota “Do pó e da fumaça nasce uma ilha”, da sessão Em dia da revista Galileu de julho, denota a ausência de intenção por parte do autor. Descreve-se que um grupo de pesquisadores conseguiu ver a erupção de um vulcão submarino e o conseqüente nascimento de uma ilha. Sim, e o que constataram? Se o leitor quiser a resposta a essa pergunta, que procure em outro lugar, já que a matéria apenas descreve o que os cientistas viram, desprezando o que verificaram a partir das observações. Ao menos aparentemente, o texto é por demais despretensioso. O que o redator queria, afinal? Apenas dizer que os pesquisadores estiveram ali, próximos ao vulcão?

Em outros textos, como nas reportagens de Galileu e Superinteressante de julho, ambas no campo da cosmologia, não se encontram elementos de contribuição à vida do leitor. Mesmo que a divulgação científica tenha o legítimo papel de satisfazer à curiosidade humana, servindo, simultaneamente, como propiciadora de momentos de prazer, ela desempenha ainda uma função educativa e de benefício à cidadania. Como diz Calvo Hernando, no seu segundo “mandamento”, o divulgador deve valorizar a importância da ciência para a humanidade. E o que a forma – plana ou curvilínea – e a expansão ou contração do Universo podem contribuir na educação dos leitores? Em princípio, nada; mas, na medida em que ajudam a entender o comportamento das estrelas, incluindo o Sol, e a explicar as transformações da Terra, além de constituírem um incentivo ao aprimoramento da tecnologia, com a construção de novas naves e aparelhos, inclusive no Brasil, o leitor pode se sentir mais próximo da ciência pura, através dos avanços da ciência aplicada.

A legitimação dos fatos pelas fontes
O Jornalismo Científico pode contribuir para a mobilização da sociedade em prol da valorização da ciência e da tecnologia autóctones e, sobretudo, para a luta contra a difusão de conhecimentos, processos e técnicas importados. (BUENO, 1984: 128)

Elas são claramente visíveis no jornalismo econômico, no jornalismo político, policial, esportivo, cultural – enfim, o jornalismo hoje em dia depende das declarações, das palavras das fontes, de tal modo que se criou a expressão “jornalismo declaratório”, um fenômeno que vem trazendo sérios prejuízos à saúde da atividade jornalística, em virtude da acomodação dos profissionais da área, tamanha é a quantidade de informações provenientes diretamente das fontes, muitas vezes sem as devidas checagens.

O jornalismo científico não constitui exceção. Ao menos neste ramo da prática jornalística, entretanto, talvez não se deva dizer que ocorre o jornalismo declaratório, mas sim a legitimação dos fatos pelas fontes. Como os cientistas em geral são as únicas pessoas competentes para dar o aval a determinados temas, e pouquíssimos são os jornalistas que prescindem de pesquisadores para explicar com precisão um assunto da ciência, raras são as matérias – tanto mais se forem longas – que não contêm sequer uma declaração legitimadora, ou das fontes que propiciaram a descoberta enfocada no texto, ou de outras, comentando o achado.

Por si só a colocação de declarações na matéria não a desmerece; pelo contrário, reforça o seu conteúdo. Deve-se atentar, porém, a dois aspectos: se não são usadas em excesso, o que representaria mais que dependência, mas sim submissão às fontes; se demonstram privilégio às fontes do exterior, em detrimento de pesquisadores nacionais. As duas matérias de cosmologia publicadas em julho são diversas na origem das declarações apresentadas, muito em razão da diferença de enfoque dado por cada uma delas a temas correlatos. Ambas usando de poucas frases entre aspas, Superinteressante se apropria de palavras de cientista estrangeiro, ao passo que Galileu entrevista pesquisadores brasileiros.

Bibliografia utilizada para este ensaio
BUENO, Wilson da Costa. Jornalismo científico no Brasil: os compromissos de uma prática dependente. São Paulo, ECA/USP, 1984 (Tese de doutorado). 364 p.
BURKET, Warren. Jornalismo científico. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1990. 230 p.
CALVO HERNANDO, M. Teoria e técnica do jornalismo científico. São Paulo, ECA/USP, 1970. 64 p.
FROTA-PESSOA, Oswaldo. “José Reis, o divulgador da ciência”. Ciência e Cultura. São Paulo, V.40, nº6, junho de 1988, p. 528-530.
VAN DIJK, Teun. La ciencia del texto: un enfoque interdisciplinario. Barcelona, Paidós, 1989. 312 p.
VIEIRA, Cássio Leite. Pequeno manual de divulgação científica: dicas para cientistas e divulgadores de ciência. São Paulo, CCS/USP, 1998. 48 p.
WARREN, Carl N. Géneros periodísticos informativos. Barcelona, A.T.E., 1975. 488 p.

Notas:
1. Nem todos os textos selecionados foram, no entanto, usados para fornecer exemplos aproveitáveis para este ensaio.
2. Foram feitos alguns reparos à tradução de Lícia Matheus Mercês e Marcial Prieto Gonzales – o decálogo original, em língua espanhola, foi obtido junto ao Núcleo José Reis de Divulgação Científica da ECA/USP, que o recebeu diretamente do autor.
Ano 2000

Fonte:
http://www.geocities.com/revista_espiral/papiro4.htm