Pedagogia

Educação para a Democracia

EDUCAÇÃO PARA A DEMOCRACIA:
O ELEMENTO QUE FALTA NA DISCUSSÃO DA QUALIDADE DO ENSINO

Por Vitor Henrique Paro (Feusp)

Quer no âmbito dos estabelecimentos de ensino e dos sistemas escolares de modo geral, quer nas produções acadêmicas e nos discursos sobre políticas públicas em educação, um dos traços que têm apresentado permanência marcante nas últimas décadas é o generalizado descontentamento com o ensino oferecido pela escola pública fundamental. O que essa insatisfação traz implícita é a denúncia da não correspondência entre a teoria e a prática, ou entre o que é proclamado (ou desejado) e o que de fato se efetiva em termos da qualidade do ensino, muito embora nem sempre haja coincidência a respeito do conceito de qualidade, conceito este que, ademais, raramente aparece explicitado de forma rigorosa. Entretanto, quando se atenta para a importância social da educação e para os enormes contingentes populacionais que as políticas públicas da área envolvem, mostra-se altamente preocupante essa ausência de um conceito inequívoco de qualidade. Visto que esta depende intimamente dos objetivos que se pretende buscar com a educação, quando estes não estão suficientemente explicitados e justificados pode acontecer de, em acréscimo à não correspondência entre medidas proclamadas e resultados obtidos, estar-se empenhando na realização dos fins errados ou não inteiramente de acordo com o que se pretende.

Entendida a educação como atualização histórica do homem e condição imprescindível, embora não suficiente, para que ele, pela apropriação do saber produzido historicamente, construa sua própria humanidade histórico-social, parece justo admitir que a escola fundamental deva pautar-se pela realização de objetivos numa dupla dimensão: individual e social. A dimensão individual diz respeito ao provimento do saber necessário ao autodesenvolvimento do educando, dando-lhe condições de realizar seu bem-estar pessoal e o usufruto dos bens sociais e culturais postos ao alcance dos cidadãos; em síntese, trata-se de educar para o “viver bem” (Ortega y Gasset, 1963). Por sua vez, a dimensão social liga-se à formação do cidadão tendo em vista sua contribuição para a sociedade, de modo que sua atuação concorra para a construção de uma ordem social mais adequada à realização do “viver bem” de todos, ou seja, para a realização da liberdade enquanto construção social. Se entendermos a democracia nesse sentido mais elevado de mediação para a construção e exercício da liberdade social, englobando todos os meios e esforços que se utilizam para concretizar o entendimento entre grupos e pessoas, a partir de valores construídos historicamente (cf. Paro, 1999, p. 105-106), podemos dizer que essa dimensão social dos objetivos da escola se sintetiza na educação para a democracia.

Em verdade, para o analista atento, o que a escola pública fundamental em geral tem conseguido realizar em termos de objetivos está muito distante dessas duas dimensões, parecendo às vezes pautar-se por fins antagônicos a elas. No que concerne à dimensão individual, a escola parece renunciar tanto a educar para o viver bem quanto a proporcionar esse viver bem em suas atividades do dia-a-dia, fazendo com que o tempo de aprendizado se apresente penoso para seus educandos, desarticulado de qualquer ligação com o prazer. Ao paradigma do “credencialismo”, pelo qual educadores e educandos preocupam-se mais com exames e aprovações do que com a apreensão do saber e com o gosto pelo conhecimento, alia-se a meta essencial de preparar para o mercado de trabalho ou para o vestibular universitário (Paro, 1999). Isso numa época em que o desenvolvimento da tecnologia e as transformações econômicas e sociais apontam, senão para a supressão, pelo menos para a minimização do tempo de trabalho e para a drástica redução do emprego (Rifkin, 1995; Harvey, 1996; Kurz, 1997; Greider, 1997). Por outro lado, como se o trabalho, enquanto constituinte do homem histórico, fosse fim em si mesmo e não mediação para o usufruto do bem estar material e espiritual proporcionado pelo desenvolvimento histórico, a escola ignora os valores relacionados à utilização prazerosa do tempo livre e do ócio (Levy, 1992; Kurz, 1998; O dilema…, 1998; Grupo Krisis, 1999).

Com relação à dimensão social, a atuação da escola parece tanto mais ausente quanto mais necessária, diante dos inúmeros e graves problemas sociais da atualidade. Prendendo-se a um currículo essencialmente informativo, ignora a necessidade de formação ética de seus usuários, como se isso fosse atribuição apenas da família, ao mesmo tempo em que deixa de levar em conta o marcante desenvolvimento da mídia, e a conseqüente concorrência de outros mecanismos de informação que passam a desenvolver com vantagens funções anteriormente atribuídas à escola. Mas, sem dúvida nenhuma, a principal falha hoje da escola com relação a sua dimensão social parece ser sua omissão na função de educar para a democracia. Sabendo-se da gravidade dos problemas e contradições sociais presentes na sociedade brasileira — injustiça social, violência, criminalidade, corrupção, desemprego, falta de consciência ecológica, violação de direitos, deterioração de serviços públicos, dilapidação do patrimônio social etc. —, que só se fazem agravar com o decorrer do tempo, e considerando que uma sociedade democrática só se desenvolve e se fortalece politicamente de modo a solucionar seus problemas se pode contar com a ação consciente e conjunta de seus cidadãos, não deixa de ser paradoxal que a escola pública, lugar supostamente privilegiado do diálogo e do desenvolvimento crítico das consciências, ainda resista tão fortemente a propiciar, no ensino fundamental, uma formação democrática que, ao proporcionar valores e conhecimentos, capacite e encoraje seus alunos a exercerem ativamente sua cidadania na construção de uma sociedade melhor.

Associada a essa incapacidade de realizar uma educação comprometida com o efetivo bem viver dos educandos e com sua contribuição para uma sociedade mais humana, pode-se notar certa apatia por parte de educadores escolares, autoridades estatais e público de modo geral. Tudo acontece como se não se gastassem grandes quantidades de recursos, não estivessem envolvidos os esforços de enormes contingentes de professores e outros funcionários e não se desperdiçassem horas preciosas da vida de milhões de crianças e jovens, com um ensino desinteressante que, não raro, dilapida sua paciência e lhes tira o prazer e o gosto de viver o presente — tudo isso em troca de resultados pífios, representados por um aprendizado que, para expressivas proporções da população que passa pelo ensino fundamental, fica muito aquém até mesmo das rudimentares capacidades do ler, escrever e fazer contas a que se propõem as mais tímidas e despretensiosas políticas públicas para a escola elementar.

Certamente o quadro geral da escola pública fundamental é muito mais complexo do que essa breve síntese pode sugerir, abrindo ao cientista da educação um amplo campo de questões a serem investigadas com vistas a esclarecer as razões da não correspondência entre discursos e práticas e elucidar os determinantes da inoperância da escola em educar para a democracia e para o viver bem. Não obstante, o exposto parece sugerir um conjunto de questões que se relacionam mutuamente, e que, grosso modo, poderiam sintetizar-se em quatro pontos que ouso propor à reflexão daqueles cujo objeto são as políticas públicas voltadas para a escola fundamental: a) a necessidade de um rigoroso dimensionamento do conceito de qualidade do ensino fundamental; b) a relevância social da educação para a democracia como função da escola pública; c) a importância de se levar em conta a concretude da escola e a ação de seus atores na formulação de políticas educacionais; e d) o papel estratégico da estrutura didática e administrativa na realização das funções da escola.

O primeiro ponto refere-se à necessidade de empreender uma reflexão em profundidade do conceito de qualidade da educação escolar. A multiplicidade de pontos de vista, nem sempre explícitos, e a imprecisão e mesmo superficialidade de muitas produções sobre o tema têm concorrido para a falta de rigor nos discursos e nos propósitos sobre o real papel da escola que em nada contribui para uma visão realista do que se pretende e se deve defender como uma educação de acordo com os interesses do cidadão e da sociedade, servindo apenas àqueles interessados em protelar soluções ou em impor o ponto de vista dos donos do poder político e econômico. Nesse particular, é preciso não apenas fazer a revisão crítica das concepções existentes, em especial o paradigma neoliberal que associa o papel da escola ao atendimento das leis de mercado, mas principalmente contribuir para a elaboração de um conceito de qualidade que valha a pena ser posto como horizonte e que sirva de parâmetro para a proposição de políticas públicas consistentes e realistas para o ensino fundamental.

Na falta de um conceito mais fundamentado de qualidade do ensino, o que acaba prevalecendo é aquele que reforça uma concepção tradicional e conservadora da educação, cuja qualidade é considerada passível de ser medida a partir da quantidade de informações exibida pelos sujeitos presumivelmente educados. Esta concepção não apenas predomina nas estatísticas apresentadas pelos organismos governamentais que se propagam por toda a mídia e acabam pautando os assuntos educacionais da imprensa — quase sempre acrítica a esse respeito — mas se faz presente também em muitos estudos acadêmicos sobre políticas públicas em educação. Para essa concepção parece pacífico que a função da escola é apenas levar os educandos a se apropriarem dos conhecimentos incluídos nas tradicionais disciplinas curriculares: matemática, geografia, história, língua portuguesa, biologia etc. Assim, a qualidade da educação seria tanto mais efetiva quanto maior fosse a quantidade desses “conteúdos” apropriados por seus alunos, sendo a escola tanto mais produtiva quanto maior o número desses alunos aprovados (e quanto maiores os escores obtidos) em provas e exames que medem a posse dessas informações.

Todavia, educação não é apenas informação. Alfred North Whitehead (1969, p. 13) já disse com propriedade que “um homem meramente bem informado é o maçante mais inútil na face da terra.” Se educação é atualização histórico-cultural, supõe-se que os componentes de formação que ela propicia ao ser humano são algo muito mais rico e mais complexo do que simples transmissão de informações. Como mediação para a apropriação histórica da herança cultural a que supostamente têm direito os cidadãos, o fim último da educação é favorecer uma vida com maior satisfação individual e melhor convivência social. A educação, como parte da vida, é principalmente aprender a viver com a maior plenitude que a história possibilita. Por ela se toma contato com o belo, com o justo e com o verdadeiro, aprende-se a compreendê-los, a admirá-los, a valorizá-los e a concorrer para sua construção histórica, ou seja, é pela educação que se prepara para o usufruto (e novas produções) dos bens espirituais e materiais. E tudo isso não se dá como simples aquisição de informação, mas como parte da vida, que forma e transforma a personalidade viva de cada um, nunca esquecendo que “cada um” não vive sozinho, sendo então preciso pensar o viver de forma social, em companhia e em relação com pessoas, grupos e instituições A educação se faz, assim, também, com a assimilação de valores, gostos e preferências, a incorporação de comportamentos, hábitos e posturas, o desenvolvimento de habilidades e aptidões e a adoção de crenças, convicções e expectativas. Esses elementos nem sempre são passíveis de medição pelos tipos de testes e provas disponíveis, aferidores de conhecimentos e informações: uma coisa, por exemplo, é responder positivamente a uma questão sobre a importância da participação política, ou dos aspectos deletérios da corrupção ou do preconceito racial; outra bastante diferente e muito mais complexa é desenvolver, na vida real, as convicções, as posturas e os comportamentos adequados a essas verdades. A peculiaridade da educação, em sua ligação orgânica com a personalidade e a vida de cada um, não permite a mesma abordagem avaliativa da maioria dos bens e serviços normalmente produzidos na sociedade. O produto da educação — o ser humano educado — não se deixa captar por mecanismos convencionais de aferição de qualidade. O muito que se pode fazer é uma aproximação, sendo a mais adequada aquela que procura garantir o bom produto pelo provimento de um bom processo (Paro, 1998). Assim, embora não se possa colocar o ser humano em “situação de laboratório” para verificar se ele foi ou não bem educado, para saber se a escola foi produtiva (se teve ou não êxito em sua intenção de educá-lo convenientemente), é possível planejar e dispor os processos pelos quais se produz essa educação de uma forma na qual se possa apostar, com certa segurança, que se conseguirão os resultados desejados. Mas, para isso, é imprescindível a maior clareza possível sobre aquilo que se quer e sobre aquilo que se considera individual e socialmente válido. Daí a constante atualidade da discussão a respeito do mais rigoroso dimensionamento possível da qualidade da educação escolar, pela via do exame e discussão dos objetivos necessários à configuração dessa qualidade.

Em segundo lugar, intrinsecamente ligada à questão da qualidade do ensino e dos objetivos da escola fundamental está a necessidade de pôr num primeiro plano de discussão o necessário caráter ético-político dessa qualidade, ou seja, trata-se de enfatizar, com respeito à escola pública fundamental, a dimensão social de seus objetivos. Muito se tem falado, mesmo em meios escolares, sobre a incompetência política de nossa população, indo desde os estereótipos de que o brasileiro “não sabe votar”, pois escolhe mal seus governantes e representantes, passando pela atribuição de falta de disposição para defender seus direitos e da negligência no cumprimento de seus deveres, até a acusação de ojeriza à participação política e de falta de interesse em se associar a empreendimentos coletivos. Não se vê, todavia, a mesma ênfase na atribuição à escola — agência supostamente destacada para a educação sistemática dessa população — de funções formadoras das qualidades políticas e sociais que se reclamam dos cidadãos. Não se trata, obviamente, de advogar para a escola um poder de determinar a transformação social, ou mesmo uma absurda exclusividade no oferecimento de valores, conhecimentos e capacidades com relação à convivência social e política, visto que o saber sobre a política e a democracia se constrói, em última instância, na própria prática social; nem se trata tampouco de utilizar a escola para fazer proselitismo político de qualquer espécie. Em verdade, tomando o fazer político como uma atribuição humano-social cujo propósito é tornar possível a convivência entre grupos e pessoas, trata-se de acreditar que a prática social aí envolvida supõe a posse de saberes que são produzidos historicamente e que também historicamente podem ser apropriados. Como tais saberes não envolvem apenas meras informações, mas o desenvolvimento livre de valores, crenças, posturas, comportamentos, hábitos, escolhas etc., faz-se necessário um processo educativo, que envolva a interação entre sujeitos livres, como o que pode (e deve) ser desenvolvido na escola. É preciso, pois, pôr a formação para a democracia sob exame, para que se possa refletir seriamente a respeito das potencialidades da escola nesse sentido.

Trata-se, em outras palavras, da necessidade de se ter a educação para a democracia como componente fundamental da qualidade do ensino. Este aspecto é tão mais importante quanto mais menosprezado ele seja no contexto das questões educacionais. A própria população, ao procurar a escola, porque guiada basicamente por seus interesses imediatos, tem em mira fins individuais. Mas, como os indivíduos não podem prescindir da vida em sociedade, não é possível conceber uma educação pública de qualidade sem levar em conta os fins sociais da escola, o que significa, em última análise, educar para a democracia, tendo presente o sentido em que estamos empregando este termo.

Mas a educação para a democracia não pode reduzir-se à preocupação com a mera formação egoística do consumidor que tem direitos, como dá a entender muito discurso estereotipado sobre a formação do cidadão, especialmente aquele de origem oficial. Como enfatiza Maria Vitória Benevides, ao falar sobre democracia e ética, lembrando Hannah Arendt, “o que permanece inarredável, como pressuposto básico, como direito essencial, é o direito a ter direitos.” (Benevides, 1998, p. 168; grifos no original.) Isto implica a necessidade da efetiva participação na vida pública que, para a mesma Benevides, representa a “expressão maior da cidadania ativa”. Acrescenta ela que isso

“significa organização e participação pela base, como cidadãos que partilham dos processos decisórios em várias instâncias, rompendo a verticalidade absoluta dos poderes autoritários. Significa, ainda, o reconhecimento (e a constante reivindicação) de que os cidadãos ativos são mais do que titulares de direitos, são criadores de novos direitos e novos espaços para expressão de tais direitos, fortalecendo-se a convicção sobre a possibilidade, sempre em aberto, da criação e consolidação de novos sujeitos políticos, cientes de direitos e deveres na sociedade.” (Benevides, 1998, p. 170, grifos meus.)

Se a verdadeira democracia caracteriza-se, dentre outras coisas, pela participação ativa dos cidadãos na vida pública, considerados não apenas como “titulares de direito”, mas também como “criadores de novos direitos”, é preciso que a educação se preocupe com dotar-lhes das capacidades culturais exigidas para exercerem essas atribuições, justificando-se portanto a necessidade de a escola pública cuidar, de forma planejada e não apenas difusa, de uma autêntica formação do democrata. Benevides destaca três elementos que considera “indispensáveis e interdependentes para a compreensão da educação para a democracia”, os quais retratam com propriedade o sentido que estamos dando a esse aspecto. São eles:

“1. a formação intelectual e a informação — da antiguidade clássica aos nossos dias trata-se do desenvolvimento da capacidade de conhecer para melhor escolher. Para formar o cidadão é preciso começar por informá-lo e introduzi-lo às diferentes áreas do conhecimento, inclusive através da literatura e das artes em geral. A falta, ou insuficiência de informações reforça as desigualdades, fomenta injustiças e pode levar a uma verdadeira segregação. No Brasil, aqueles que não têm acesso ao ensino, à informação e às diversas expressões da cultura lato sensu, são, justamente, os mais marginalizados e ‘excluídos’.

2. a formação moral, vinculada a uma didática dos valores republicanos e democráticos, que não se aprendem intelectualmente apenas, mas sobretudo pela consciência ética, que é formada tanto de sentimentos quanto de razão; é a conquista de corações e mentes.

3. a educação do comportamento, desde a escola primária, no sentido de enraizar hábitos de tolerância diante do diferente ou divergente, assim como o aprendizado da cooperação ativa e da subordinação do interesse pessoal ou de grupo ao interesse geral, ao bem comum.” (Benevides, 1998, p. 167-168)

Essa concepção que releva a importância da participação na vida pública, contemplando a necessidade de formação para a democracia, é coerente com o pensamento democrático de Antonio Gramsci que, ao criticar o ensino profissional por preocupar-se apenas com a formação técnica do trabalhador, afirmava que

“a tendência democrática, intrinsecamente, não pode consistir apenas em que um operário manual se torne qualificado, mas em que cada ‘cidadão’ possa se tornar ‘governante’ e que a sociedade o coloque, ainda que ‘abstratamente’, nas condições gerais de poder fazê-lo.” (Gramsci, 1978, p. 137)

Certamente, ser governante numa sociedade que leva o conceito de democracia à radicalidade não implica necessariamente ter um cargo formal de governante. Mais importante do que isso, ao se pensar nas grandes massas da população, é que diuturnamente o cidadão comum sinta que sua vida está integrada a um todo social para o qual ele contribui com suas ações, com suas opiniões e sua participação em múltiplas instâncias do tecido social, em que seus interesses e sua vontade manifesta sejam levados em conta. Mas, para que isso aconteça é preciso, dentre outras coisas, que ele seja formado para assim agir e interagir. Em termos daquilo que a escola pode oferecer, parece procedente exigir desta que suas práticas sejam orientadas para esse tipo de formação. Tudo isso, obviamente, empresta grande relevância a toda investigação que intenta refletir a respeito dessas questões e investigar as perspectivas de a escola desempenhar essa função e as dimensões que pode assumir esse desempenho.

O terceiro ponto diz respeito à necessidade de levar na devida conta a concretude das práticas escolares, com a clareza de que é dos diversos atores aí envolvidos, e das ações e relações que aí se desenvolvem, que depende em última instância a realização de qualquer projeto de escola pública de qualidade. Trata-se de, na busca de objetivos, não perder de vista as mediações necessárias para concretizá-los, o que constitui uma autêntica questão administrativa, se por administração entendermos a “utilização racional de recursos para a realização de fins determinados.” (Paro, 1986, p. 18). A esse respeito, embora não seja incomum tratar-se a administração como uma disciplina essencialmente formal, ocupada meramente com métodos e técnicas e preocupada com o controle do trabalho alheio, é preciso dar ênfase a sua intrínseca dimensão mediadora, para não perder de vista a necessária adequação das ações, recursos e processos aos fins perseguidos. No caso da administração escolar, tenho insistido em que, quando consideradas em sua função de buscar a realização dos fins educativos, tanto as atividades-meio quanto as atividades-fim que se desenrolam na escola — e não somente as atividades de direção — são objeto de estudo da administração escolar. Daí a importância de, no subsídio a políticas educacionais, se acercar da concretude dos fatos e relações que se dão no cotidiano da escola fundamental, se se pretende estudar formas de melhorar seu desempenho e propor políticas que reorientem suas ações. Isso exige investigar a anatomia das práticas pedagógicas e das demais relações sociais que acontecem no dia-a-dia da escola, de modo a compreender seus problemas, considerar suas virtudes e avaliar suas potencialidades. Ao mesmo tempo é preciso conhecer a opinião dos atores (professores, alunos, pais, direção, demais funcionários), seus interesses e expectativas, sua visão da educação e dos problemas a ela correlatos, bem como os determinantes de suas posturas e sua disposição para aderir a novas propostas.

Por isso, é preciso estar atento à relativa negligência com que as políticas públicas educacionais, em geral, têm contemplado essa questão. Conforme já afirmamos, na medida em que qualquer proposta educativa escolar só se efetiva por meio da prática que tem lugar nas escolas, parece evidente que não se podem traçar políticas realistas de provimento de um ensino de qualidade sem que se considerem as dimensões dessa prática. Na perspectiva de uma proposta de melhoria da qualidade do ensino, a pesquisa e o conhecimento dessa realidade são necessários quer para se considerarem as potencialidades da escola, sabendo-se com que mediações se pode contar para se conseguir o que se deseja, quer para se identificarem os obstáculos existentes, propondo-se medidas que modifiquem a própria realidade escolar.

Com relação às pessoas envolvidas no cotidiano escolar, parece que as políticas educacionais têm passado à margem da opinião, da vontade e da disposição daqueles de quem o ensino depende inquestionavelmente para ser realizado, quais sejam, os atores da prática educativa escolar, especialmente professores e estudantes. Mas, convém assinalar que o empreendimento educacional — entendida a educação não como mera passagem de informações, mas no sentido em que estamos adotando aqui — não é idêntico a outros empreendimentos do sistema produtivo convencional, em que é possível relativo rigor no controle do desempenho dos produtores diretos. Em primeiro lugar, porque a separação entre concepção e execução do trabalho não é passível de se dar com a mesma intensidade e dimensão em que é realizada, por exemplo, na típica empresa produtora de mercadorias. No processo educativo, como já demonstrado em outros trabalhos (v., p. e., Paro, 1986), a necessária presença do saber “enquanto cultura de que se apropria”, e não como mero “saber fazer” (este sim ao alcance da divisão técnica do trabalho), aliada à condição subjetiva dos elementos envolvidos no processo de trabalho (o próprio objeto de trabalho– o aluno – é, e precisa ser, sujeito), supõe certa imprevisibilidade das ações e maior dose de autonomia dos agentes envolvidos, não inteiramente controláveis remotamente, nos moldes da divisão pormenorizada do trabalho. Em segundo lugar porque, conforme já realçamos, a qualidade da educação não é passível de verificação imediata e relativamente rigorosa por meio de mecanismos convencionais de aferição, aplicáveis à maioria dos produtos postos à venda no mercado. Por esse motivo, no empreendimento educacional, necessita-se, mais do que em outros setores, uma significativa adesão dos agentes aos objetivos e às formas de realizá-los. Numa empresa comum podem-se conseguir produtos de boa qualidade com trabalhadores (produtores) descontentes (embora menos eficientemente); na escola não: aqui, a não identificação dos agentes com os objetivos compromete a qualidade dos resultados, fato que pode permanecer oculto, pela dificuldade de avaliação imediata do produto pelos métodos convencionais.

Parece evidente, portanto, a importância determinante da adesão dos agentes escolares a quaisquer propósitos que se pretendam atingir por meio da prática escolar. A escassez de estudos sobre essa realidade visando subsidiar políticas públicas é, assim, uma das razões que justificam investigações que objetivem captar os determinantes imediatos dos fatos e relações que se dão no dia-a-dia da escola bem como aquilatar as potencialidades dessa realidade e as perspectivas de sua transformação.

Finalmente, o quarto ponto refere-se ao papel da estrutura didática e administrativa no desempenho escolar. Trata de um dos aspectos pouco pesquisados no que tange aos determinantes da qualidade do ensino. Não obstante, tomada essa qualidade numa perspectiva ético-política que privilegia a formação do cidadão atuante numa sociedade democrática, e considerando a imprescindível coerência entre atos e palavras para a concretização dessa formação, o estudo das dimensões em que a organização didático-pedagógica e a estrutura administrativa da escola condicionam a prática escolar e a efetiva realização dos objetivos mostra-se altamente relevante, tendo em conta que aquela coerência depende, em grande medida, da ação desses condicionantes.

Na realidade de nossas escolas públicas básicas em que se evidencia o divórcio entre a prática escolar cotidiana e as perspectiva de uma consistente emancipação intelectual e cultural dos educandos, o que se verifica é que a estrutura da escola mostra-se inteiramente consoante com esse divórcio, dando-lhe sustentação material, na medida em que não é concebida de modo a favorecer a condição de sujeito dos agentes envolvidos. O próprio conselho de escola, instituído presumivelmente para esse fim, mostra-se, na maioria das vezes, totalmente inoperante, mergulhado numa estrutura avessa à participação e ao exercício da cidadania.

A hipótese aqui subjacente é a de que essa estrutura não é neutra com relação aos fins educacionais porquanto suas forças não atuam apenas sobre a eficiência do ensino, mas também sobre a natureza dos resultados, isto é, dos objetivos efetivamente alcançados. Sendo mediações para o alcance dos fins que se propõem, tanto a estrutura didática (currículos, programas, métodos e organização horizontal e vertical do ensino) quanto a estrutura administrativa (organização do trabalho e distribuição do poder e da autoridade) precisam ser dispostas de modo coerente com esses fins. Esta parece ser uma das maiores fontes de resistência à realização de propósitos democráticos numa escola pública tradicionalmente estruturada e organizada para atender objetivos não comprometidos com a liberdade e com a formação de autênticos sujeitos históricos. A desconsideração desse aspecto tem sido também uma das causas do fracasso de mudanças educacionais ou de tentativas pontuais de introdução de mecanismos democráticos na escola, visto que “não adianta gerir democraticamente estruturas antidemocráticas, estruturas excludentes.” (Arroyo, 1996, p. 17) Assim, políticas públicas comprometidas com objetivos democráticos, constituintes de uma nova qualidade do ensino, não podem ignorar a necessidade de propor os meios adequados para a realização desses objetivos, dentre os quais se incluem mudanças na própria estrutura escolar, ou mesmo a instituição de uma estrutura didática e administrativa inteiramente nova. Isto porque, como a prática tem demonstrado, “é impossível assegurar a democratização da escola sem facultar às unidades escolares condições político-institucionais favoráveis.” (Pepe, 1995, p. 106)

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Em síntese, o que parece essencial na defesa da escola pública de qualidade é que esta se refira à educação por inteiro, não apenas a aspectos parciais passíveis de serem medidos mediante provas e exames convencionais. Como processo de atualização histórico-cultural, a educação envolve dimensões individuais e sociais, devendo visar tanto ao viver bem pessoal quanto à convivência social, no desfrute dos bens culturais enquanto herança histórica que se renova continuamente. A democracia, como meio para a construção da liberdade em sua dimensão histórica, faz parte dessa herança cultural. Entendida como processo vivo que perpassa toda a vida dos indivíduos, laborando na confluência entre o ser humano singular e sua necessária pluralidade social, ela se mostra imprescindível tanto para o desenvolvimento pessoal e formação da personalidade individual, quanto para a convivência entre grupos e pessoas e a solução dos problemas sociais, colocando-se, portanto, como componente incontestável de uma educação de qualidade.

Para as políticas públicas em educação isso deve significar uma afirmação radical da função escolar de formação para a democracia, com projetos e medidas que adotem essa função de forma explícita e planejada. Isso implicará, em termos de sua viabilidade, a necessidade de se levar em conta a concretude dos fatos e relações que se dão no cotidiano da escola, tendo em vista a superação dos obstáculos à mudança e o diálogo com as potencialidades de transformação que aí se verificam. Por outro lado, para que essa função se realize de fato, a necessária coerência entre discurso e realidade exige que a organização didático-pedagógica e a estrutura administrativa da escola se façam de acordo com princípios e procedimentos também democráticos.

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Fonte:
http://302284.vilabol.uol.com.br/educacaodemocracia.htm