Geografia

As Perspectivas dos Estudos Geográficos

Por Antônio Christofoletti

As transformações sucessivas que ocorrem no conhecimento científico e no contexto sócio-econômico promovem a contínua mudança nos desafios e nos problemas enfrentados pelos homens. Procurando analisar e explicar esses problemas, a fim de propor soluções e prever as possíveis conseqüências futuras, o conhecimento científico está sempre aceitando os desafios e lutando para superar as questões relevantes para as sociedades. Considerando as mais variadas ciências, que são parcelas da comunidade científica global, podemos observar que cada ciência particular reage de modo diferente a esse desafio e à solicitação, e o seu momento histórico pode colocá-la na posição de vanguarda ou na posição de acompanhante do cortejo das ciências, conforme a valorização que a elas é destinada.

Nesta oportunidade, a nossa preocupação restringe-se ao conhecimento geográfico. Não é nosso desejo retraçar a evolução histórica desta parcela científica, nem analisar as obras e as contribuições dos grandes mestres. O nosso objetivo é oferecer um quadro genérico sobre as principais perspectivas que foram predominantes, no transcurso do século XX, no comando e na orientação das pesquisas, assim como norteadoras das finalidades propostas para a Geografia. A focalizaçâo maior é sobre as tendências que se mesclam na atualidade, cada uma procurando ser a mais significativa e o farol da atividade geográfica. Sob cada focalização a argumentação sempre é a de ser a substitutiva, mostrando ser melhor que as precedentes ou as competidoras. Todavia, não se poderá compreender esse debate atual se não abordarmos as características da geografia predominante na primeira metade do Século XX, se não tivermos uma visão mais abrangente do seu desenvolvimento no tempo. A fim de esclarecer e caracterizar as diversas perspectivas atuantes nos estudos geográficos, procuramos estabelecer o seguinte esquema seqüencial em nossa exposição: a fase tradicional (pré-1950), a Nova Geografia, a Geografia Humanística, a Geografia Idealista, a Geografia Radical e a Geografia Têmporo-Espacial.

1. A GEOGRAFIA TRADICIONAL
Embora lançando raízes históricas ao longo dos séculos, foi somente no Século XIX que a Geografia começou a usufruir do status de conhecimento organizado, penetrando nas universidades. As primeiras cadeiras de Geografia foram criadas na Alemanha, em 1870, e posteriormente na França. Organizada e estruturada em função das obras de Alexandre von Humboldt e de Carl Ritter, desabrochando na Alemanha e na França, pouco a pouco a Geografia foi-se difundindo para os demais países. As contribuições e as idéias apresentadas pelos geógrafos alemães e franceses tiveram grande influência no desenvolvimento dessa ciência na primeira metade do Século XX. Se na Alemanha os trabalhos mais significativos são os de Alfred Hettner; na França os trabalhos básicos são os de Paul Vidal de La Blache.

Tratar da definição da Geografia é assunto delicado. Em 1925, Alfred Hettner considerava como objetivo fundamental da Geografia o estudo da diferenciação regional da superfície terrestre. Esta definição foi acatada e elaborada de modo minucioso por Hartshorne, em 1939, em sua obra The Nature of Geography. Outra definição referia-se à análise das influências e interações entre o homem e o meio, que se expressou de modo claro na proposição de Albert Demangeon, em 1942: “é o estudo dos grupos humanos nas suas relações com o meio geográfico”. Muito mencionada também é a definição elaborada por Emmanuel de Martonne, em sua obra Traité de Géographie Physique, cuja primeira edição surgiu em 1909 e a última em 1951. De Martonne ponderou que a “geografia moderna encara a distribuição à superfície do globo dos fenômenos físicos, biológicos e humanos, as causas dessa distribuição e as relações locais desses fenômenos”. Embora houvesse acordo de que a superfície terrestre era o domínio específico do trabalho geográfico, essas definições e a prática da pesquisa geográfica estavam eivadas de contradições dicotômicas.

Entre elas, duas merecem ser destacadas nesta oportunidade. A primeira dicotomia estava relacionada com a Geografia Física e a Geografia Humana. Representando os conjuntos meio geográfico e atividades humanas, a Geografia Física destinava-se ao estudo do quadro natural, enquanto a Geografia Humana preocupava-se com a distribuição dos aspectos originados pelas atividades humanas. Em virtude do aparato metodológico mais eficiente das ciências físicas e da esplêndida concatenação teórica elaborada por William Morris Davis, a Geografia Física rapidamente ganhou a imagem de ser a parte cientificamente mais bem consolidada e executada. Praticamente, não havia mais necessidade de preocupações metodológicas e conceituais a seu propósito. Destituída de aparato teórico e explicativo para as atividades humanas, assim como da imprecisão dos procedimentos metodológicos, a Geografia Humana sempre se debatia na procura de justificar o seu gabarito científico, e em estabelecer sua definição e finalidades como ciência. A esta dicotomia se juntava o conflito conceitual de ser a Geografia uma “ciência única” ou um conjunto de ciências. Os debates relativos a essa temática são contínuos e sempre reabertos, sem chegar a uma conclusão definitiva. Do artigo de Vidal de La Blache (1913) ao de Henri Baulig (1948), para exemplificar, esses assuntos são relevantes.

A segunda dicotomia se refere à geografia geral e à geografia regional. Objetivando estudar a distribuição dos fenômenos na superfície da Terra, a geografia geral analisava cada categoria de fenômenos de maneira autônoma. Essa focalização resultou na geografia sistemática ou tópica e na subdivisão da geografia (geomorfologia, hidrologia, climatologia, biogeografia, geografia da população, da energia, urbana, industrial, da circulação e outras). Entretanto, deve-se lembrar que o designativo geral não se referia ao conceito da metodologia científica de procurar generalizações ou leis, mas se baseava no principio da “unidade terrestre” (La Blache, 1896) e na “escala planetária” (Cholley, 1951). Levava em consideração o ato de comparar constantemente determinado fenômeno em um lugar com “os fenômenos análogos que podem apresentar-se em outros pontos do globo, … a fim de mostrar como é que as suas particularidades se explicam pelos princípios gerais da evolução” (De Martonne, 1954, p. 18). Tendo em vista as concepções davisianas, De Martonne exemplificou com o caso da morfologia litorânea. Nessa circunstância, se possuía um modelo de evolução das formas litorâneas e a ele se comparavam as características dos casos cujas especificidade propiciavam classificar conforme as etapas da evolução ou de acordo com os tipos de influências externas (costas de emersão, costas de submersão; costas atlânticas, costas pacíficas etc).

A Geografia Regional procurava estudar as unidades componentes da diversidade areal da superfície terrestre. Em cada lugar, área ou região a combinação e a interação das diversas categorias de fenômenos refletiam-se na elaboração de uma paisagem distinta, que surgia de modo objetivo e concreto. O estudo das regiões e das áreas favoreceu a expansão da perspectiva regional ou cronológica, que teve como êmulo e padrão as clássicas monografias da escola francesa. Preocupados em compreender as características regionais, o geógrafo desenvolveu a habilidade descritiva, exercendo a caracterização já estabelecida por La Blache, em 1913. Defrontando-se com os casos, a explicação baseava-se no destrinchar a evolução histórica e estabelecer a seqüência das fases que culminaram nas características atuais da referida área ou região. E, também, levando em conta as concepções de que o globo era um organismo coerente, com as suas partes funcionando de modo integrador, admitia-se que muitas unidades areais executavam uma “função” em termos do conjunto. O desenvolvimento da cultura canavieira no Nordeste brasileiro era para abastecer o mercado europeu; os países-colônias são abastecedores de matérias-primas para os países imperialistas, e outras explicações similares podem ser arroladas para os mais diversos aspectos e categorias de fenômenos.

Na perspectiva corológica, a região é unidade globalizada na qual há interpenetração de todos os aspectos, os físicos e os humanos. Ao estudar a região, o geógrafo podia compreender a totalidade. Esta totalidade, resultante da pluralidade das coisas, assinala a influência relativamente inconsciente que a visão da filosofia de Hegel teve no trabalho geográfico. Esta noção de pluralidade de fenômenos está no âmago do conceito de Landschaft e de paisagem e criava a possibilidade de considerar as regiões como entidades objetivas, independentes do observador, sendo “objetos concretos” da análise geográfica (Hartshorne, 1939, 1978).

Uma questão paralela incidia sobre o procedimento metodológico. Analisando e compreendendo o conjunto inter-relacionado dos aspectos existentes em uma região, considerava-se que cada categoria de fenômeno, em particular, era o objeto de determinada ciência (Sociologia, Economia, Demografia, Botânica, Hidrologia e outras)l. Todas essas ciências executavam a análise sobre os assuntos particulares. À Geografia, considerando a totalidade, correspondia o trabalho de síntese, reunindo e coordenando todas as informações a fim de salientar a visão global e totalizadora da região. A vocação sintética tornou-se a responsável pela unidade do ponto de vista atribuído à pesquisa geográfica. É ela a responsável pela unidade da Geografia, fazendo com que a “Geografia tenha por objeto o conhecimento das relações que condicionam, em determinado momento, a vida e as relações dos grupos humanos. Essas relações colocam em jogo elementos e atos de essência múltipla, tão diferentes como a presença do granito ou a de uma fronteira” (Pierre George, 1961). Em virtude dessa concepção ampla, todos os eventos da superfície terrestre acabam pertencendo ao âmbito geográfico. A importância assumida pela síntese é tão grande que Jacque Iine Beaujeau Garnier, em 1971, observa que “o método geográfico visa analisar uma parcela do espaço concreto, isto é, pesquisar todas as formas de relações e de combinações que podem existir entre a totalidade dos diversos elementos em presença. Isto é a geografia global; a geografia tout court”. Além de refletir no método, a síntese geográfica é plenamente atingida nos estudos regionais, permitindo a André Allix afirmar que “o estudo regional está no coração de nossos trabalhos. Nenhum geógrafo é digno desse nome se não se dedicar aos esforços da definição sintética das regiões… O estudo regional é a mais completa expressão do método geográfico”. Como conseqüência do campo tão extenso e da perspectiva sintética, resulta que os “geógrafos chegam a acreditar que a sua maneira de trabalhar é única e exclusiva, e que a geografia não é uma ciência como as outras” (Reynaud, 1974). Daí as afirmações constantes para assinalar que a Geografia era caracterizada por possuir métodos próprios e distintos das demais ciências. A Geografia era uma ciência singular.

A propósito da Geografia Tradicional, inúmeros são os trabalhos conceituais e metodológicos disponíveis em língua portuguesa. É da mais significativa importância salientar o trabalho e a preocupação assídua do periódico Boletim Geográfico em publicar traduções de artigos básicos elaborados por geógrafos de diversas nacionalidades. Publicado regularmente desde 1943, pelo antigo Conselho Nacional de Geografia e depois pela Fundação IBGE, constitui fonte preciosa de referências bibliográficas. Com o intuito somente de exemplificar, podemos lembrar os artigos de Boyé (1974), Cholley (1964), Davis (1945), James (1967), James e Jones (1959), Le Lannou (1948), Tatham (1959) e Whittlesey (1960), entre muitos outros. É óbvio, também, que a eles se somam muitos artigos de geógrafos brasileiros e portugueses. Dentre as obras publicadas em língua portuguesa convém mencionar as de Paul Vidal de La Blache (1954), Jean Brunhes (1962), René Clozier (1950), Jan Broek (1967), Olivier Dollfuss (1972; 1973), Pierre George (1972), Pierre George, R. Gughielmo, B. Kaiser e Y. Lacoste (1966), Richard Hartshorne (1978), Pierre Monbeig (1957), Gabriel Rougerie (1971), Hilgard Sternberg (1946), S. W. Wooldridge e W. G. East (1967) e a de Nelson Werneck Sodré (1976).

2. A NOVA GEOGRAFIA
A denominação de “Nova Geografia” foi inicialmente proposta por Manley (1966), considerando o conjunto de idéias e de abordagens que começaram a se difundir e a ganhar desenvolvimento durante a década de cinqüenta. O surgimento de novas perspectivas de abordagem está integrado na transformação profunda provocada pela Segunda Guerra Mundial nos setores científico, tecnológico, social e econômico. Esta transformação, abrangendo o aspecto filosófico e metodológico, foi denominada de “revolução quantitativa e teorética da Geografia” por lan Burton (1963). Embora se possam encontrar indícios históricos desde a década de quarenta, a contribuição de Fred Schaefer, em 1953, sobre Exceptionalism in Geography: a methodological examination, marca cronologicamente a tomada de consciência dessas tendências renovadoras.

Tentando superar as dicotomias e os procedimentos metodológicos da Geografia Regional, a Nova Geografia desenvolveu-se procurando incentivar e buscar um enquadramento maior da Geografia no contexto científico global. A fim de traçar um panorama genérico sobre a Nova Geografia, podemos especificar algumas de suas metas básicas:

a) Rigor maior na aplicação da metodologia científica – baseada na filosofia do positivismo lógico, a metodologia científica representa o conjunto dos procedimentos aplicáveis à execução da pesquisa científica. Pressupondo que haja a unidade da ciência, todos os seus ramos devem-se pautar conforme os mesmos procedimentos. Não há metodologia específica para uma ciência, mas para o conjunto das ciências. Há métodos científicos para a pesquisa geográfica, mas não métodos geográficos de pesquisa.

Em cada ciência, o que a diferencia das demais é o seu objeto. Cada ciência contribui para a compreensão da ordem e da estrutura existentes e o setor da Geografia é o das organizações espaciais. A abordagem da geografia científica está baseada na observação empírica, na verificação de seus enunciados e na importância de isolar os fatos de seus valores. Ao separar os valores atribuídos aos fatos dos próprios fatos, a ciência procura ser objetiva e imparcial.

Considerando a metodologia científica como o paradigma para pesquisa geográfica, a Nova Geografia salienta a necessidade de maio rigor no enunciado e na verificação de hipóteses, assim como na formulação das explicações para os fenômenos geográficos. E não se deve só explicar o existente e o acontecido, mas com base nas teorias e nas leis ser capaz também de propor predições. Desta maneira, cria-se a simetria entre o passado e o futuro. Por outro lado, no discurso explicativo há preferência pelas normas relacionadas com o procedimento dedutivo-nomológico. E, por essa razão, considerando-se certas hipóteses e determinadas condições, o resultado do trabalho geográfico deve ser capaz de prever o estado futuro dos sistemas de organização espacial e contribuir de modo efetivo para alcançar o estado mais condizente e apto para as necessidades humanas.

Os enunciados geográficos assumem validade em função da sua verificação e teste. O critério de refutabilidade ganha importância. Em vez de a validade depender da autoridade do geógrafo que observou e descreveu o fenômeno (ou a região), passa-se a aferi-la conforme os procedimentos de verificação propostos pela metodologia científica. Com o intuito de cada vez mais se conhecer os aspectos e as questões relacionadas com a metodologia, os geógrafos passaram a se interessar pela filosofia da ciência. E as obras de Ernest Nagel, Gustav Bergmann, R. B. Braithwaite, Mario Bunge, Carl Hempel e de Karl Popper, entre muitos outros, começaram a ser mencionadas por geógrafos preocupados com essa temática. E sob essa perspectiva, duas obras geográficas ganharam maior realce: a Explanation in Geography, de David Harvey (1969) e a An introduction to scientific reasoning in Geography, de D. Amedeo e R. Golledge (1975).

b) Desenvolvimento de teorias – a falta de teorias explicitamente expostas na Geografia Tradicional foi veementemente criticada por inúmeros geógrafos. Por essa razão, sob o paradigma da metodologia científica, a Nova Geografia também procurou estimular o desenvolvimento de teorias relacionadas com as características da distribuição e arranjo espaciais dos fenômenos. E deve-se notar a grande facilidade com que os geógrafos passaram a usar e a trabalhar com as teorias disponíveis em outras ciências, como as teorias econômicas, mormente as relacionadas com a distribuição; localização e hierarquia de eventos (as teorias de Christaller, von Thunen, Losch, Weber).

Tendo em vista verificar a aplicabilidade de tais teorias, muitos geógrafos passaram a estudar os padrões de distribuição espacial dos fenômenos (estudo de distribuições pontuais, de redes ou de áreas), mas sem fazer estudo crítico e propor modificações ou substituições àquelas teorias. Não se encontra contribuição realmente significativa para a teoria geográfica das organizações espaciais. Se havia deficiência em teorias, essa lacuna ainda continua a existir. Por outro lado, com o estudo dos padrões espaciais aceitava-se implicitamente o espaço como a dimensão característica da análise geográfica e a superfície terrestre como o seu objeto de estudo. Basicamente, não havia nada de diferenciação fundamental com as definições propostas por Hettner e Hartshorne. Ao deslocar o foco de análise para o das organizações espaciais, estava-se propondo modificação substancial; mas a inércia da formação geográfica manteve-se e a transformação continua a ser almejada.

Para esclarecer a perspectiva da transformação teórica, é útil lembrar o que aconteceu com o setor da Geomorfologia. A concepção teórica elaborada por William Morris Davis predominou de modo inconteste por quase meio século. Se muitas críticas Ihe eram endereçadas, não surgia outra proposição coerente e global capaz de substituí-la. Só no findar dos anos cinqüenta e na década seguinte começaram a aparecer indícios de nova estrutura teórica, que ganhou corpo com a teoria do equilíbrio dinâmico, de John T. Hack (1960), revivendo e ampliando antigas concepções expostas por Grove Karl Gilbert. Quase simultaneamente, Leopold e Langbein (1962) expunham as perspectivas da teoria probabilística da evolução do modelado terrestre. Estas teorias permitiram propor explicações diferentes aos mesmos conjuntos de fatos, substituindo as explicações davisianas, como no caso do perfil longitudinal dos cursos de água e sobre os problemas relacionados com as capturas fluviais e oscilações do nível de base (Ghristofoletti, 1977, 1978)

c) O uso de técnicas estatísticas e matemáticas – o uso de técnicas matemáticas e estatísticas para analisar os dados coletados e as distribuições espaciais dos fenômenos foi uma das primeiras características que se salientou na Nova Geografia. E o seu carisma foi tão grande que se refletiu, na adjetivação empregada por muitos trabalhos, a denominação de “Geografia Quantitativa”.

Indiscutivelmente, o uso das técnicas de análise deve ser incentivado porque elas se constituem em ferramentas, em meios para o geógrafo. O conhecimento das diversas técnicas de análise (as simples, as multivariadas e as relacionadas com a análise seriada e espacial) é básico para o geógrafo. Entretanto, usar técnicas estatísticas, por mais sofisticadas que sejam, não é fazer Geografia. Se o geógrafo coleta inúmeros dados e informações e os analisa através do computador (por exemplo, usando a análise fatoral ou a discriminante), sem ter noção clara do problema a pesquisar e se não dispuser de arsenal teórico e conceitual que Ihe permita adequadamente interpretar os resultados obtidos, estará apenas fazendo trabalho de mecanização, mas nunca um trabalho geográfico.

Infelizmente muitos trabalhos podem ser mencionados para exemplificar o mau uso das técnicas ou a sua escolha inadequada. Mas não se deve, por isso, confundir a deficiência do geógrafo com a incapacidade da Nova Geografia. Todas as técnicas, adequadas aos mais variados tipos de problemas, estão disponíveis. Se por ignorância ou por mera facilidade prática o geógrafo escolhe inadequadamente a técnica a usar, esse procedimento corresponde ao fato de um médico receitar ao paciente remédio impróprio é sua doença, pois é o que ele conhece e dispõe. Deve-se, por isso, estigmatizar a Medicina? Há muita celeuma em torno da quantificação em Geografia – é conseqüência da confusão que se faz entre a escolha e o uso das técnicas, com a própria ciência.

Na composição curricular das universidades brasileiras vão sendo introduzidas, aos poucos, disciplinas relacionadas com a quantificação em Geografia. Se na literatura geográfica existem obras variadas e significativas para a formação “quantitativa” do geógrafo, ainda não dispomos, em língua portuguesa, de nenhum manual. Além de alguns artigos esparsos nas diversas revistas, a obra mais saliente é a recente publicação realizada pelo IBGE, sobre Tendências Atuais na Geografia Urbano-Regional: Teorização e Quantificação, sob a organização de Speridião Faissol (1978).

d) A abordagem sistêmica – a abordagem sistêmica serve ao geógrafo como instrumento conceitual que Ihe facilita tratar dos conjuntos complexos, como os da organização espacial. A preocupação em focalizar as questões geográficas sob a perspectiva sistêmica representou característica que favoreceu e dinamizou o desenvolvimento da Nova Geografia.

A aplicação da teoria dos sistemas aos estudos geográficos serviu para melhor focalizar as pesquisas e para delinear com maior exatidão o setor de estudo desta ciência, além de propiciar oportunidade para considerações críticas de muitos dos seus conceitos. A bibliografia específica avoluma-se continuamente, abordando temas ligados às geociências ou às ciências humanas. No âmbito da Geografia, todos os seus setores estão sendo revitalizados pela utilização da abordagem sistêmica. Por exemplo, a introdução do conceito de geossistema, pelos geógrafos soviéticos, permitiu recompor e revitalizar o campo da Geografia Física (Sotchava, 1977).

Na literatura em língua portuguesa, poucas são as contribuições disponíveis para favorecer ao leitor. Para amenizar essa lacuna, deve-se salientar a contribuição feita por Christofoletti (1979), elaborando a obra Análise de Sistemas em Geografia. Apresentando os conceitos básicos da teoria dos sistemas, o autor focaliza diversos itens da abordagem sistêmica e realiza útil levantamento bibliográfico sobre a questão.

e) O uso de modelos – intimamente relacionada com a verificação das teorias, com a quantificação e com a abordagem sistêmica, desenvolveu-se o uso e a construção de modelos. A construção de modelos pode ser considerada como estruturação seqüencial de idéias relacionadas com o funcionamento do sistema. O modelo permite estruturar o funcionamento do sistema, a fim de torná-lo compreensível e expressar as relações entre os seus diversos componentes.

Para o geógrafo, o modelo é um instrumento de trabalho que deve ser utilizado na análise dos sistemas das organizações espaciais. Como na quantificação, não se deve prender à construção e ao uso de modelos pelo simples objetivo em si mesmo. Mas é um meio para melhor se atingir a compreensão da realidade.

No artigo de Christofoletti sobre As Características da Nova Geografia encontram-se diversas ponderações sobre o assunto, e não se torna necessário retomá-las. A obra de R. J. Chorley e Peter Haggett, sobre Models in Geography, publicada em 1967, e que se tornou contribuição clássica sobre o assunto, foi traduzida para a língua portuguesa e editada em três volumes durante os anos de 1974 e 1975.

3. AS TENDENCIAS GEOGRÁFICAS ALTERNATIVAS
Baseando suas preocupações conceituais nas teses do positivismo lógico, a metodologia científica formalizou-se perante algumas posições-chave, entre as quais convém destacar as seguintes:

– o conhecimento científico fecundo é aquele baseado em fatos, em eventos colhidos no mundo empírico;

– para que se possa ter certeza do conhecimento é necessário que haja verificação das hipóteses, empregando-se as mais diversas técnicas do uso de testes, e que se chegue à formulação de leis. O tipo de certeza é o fornecido pelas ciências experimentais. Em época mais recente, o critério de refutabilidade proposto por Karl Popper vem sendo tomado como ponto básico para a metodologia científica;

– o procedimento científico deve-se ater sempre ao contato com a experiência do mundo empírico, a fim de evitar o verbalismo e o erro.

A filosofia positivista caracteriza-se pela valorização exclusiva dos dados, tais como são coletados e observados pela experimentação, e o procedimento metodológico padrão é o representado pelas ciências físicas. Essa metodologia, pois, deveria ser aplicada a todos os ramos do conhecimento. Esta perspectiva da identidade fundamental entre as Ciências Exatas e as Ciências Humanas apresenta raízes antigas, e as suas origens volvem à tradição empirista inglesa, que remonta a Francis Bacon (1561-1626). No Século XIX, Auguste Comte (1798-1857) delineou os fundamentos do positivismo, principalmente em duas de suas obras: Curso de Filosofia Positiva (1830-1842) e Discurso sobre o Espirito Positivo (1844). Na França, Emile Durkheim (1858-1917) foi um dos. propugnadores da aplicação da linha metodológica positivista às Ciências Humanas, isto é, ao estudo dos fatos humanos através dos métodos comuns das Ciências naturais.

Inúmeros filósofos colocaram-se em posição contrária ao positivismo. No que se refere ao nosso interesse imediato, os antipositivistas são adeptos de uma distinção entre as Ciências Humanas e as Ciências Naturais, e as suas bases principais foram estabelecidas por Friedrich Hegel (1770-1831). Posteriormente, Wilhelm Dilthey (1833-1911) estabeleceu uma distinção que se tornou clássica e generalizada entre explicação (erklären) e compreensão (verstehen). O modo explicativo seria característico das Ciências Naturais, que procuram o relacionamento causal entre os fenômenos. A compreensão seria o modo típico de proceder das Ciências Humanas, que não estudam fatos que possam ser explicados propriamente, mas visam aos processos permanentemente vivos da experiência humana, e procuram extrair deles o seu sentido. Os sentidos (ou significados) são fornecidos, segundo Dilthey, na própria experiência do investigador e poderiam ser empaticamente apreendidos na experiência dos outros.

Se a Nova Geografia representa, na história do conhecimento geográfico, retomada e aplicação consciente da metodologia científica aos seus problemas, também se compenetrou de muitas das dificuldades e exigências metodológicas, procurando soluções para resolvê-las. A questão da proposição de leis em Geografia Humana, por exemplo, serve de alerta. A formulação de leis é essencial para caracterizar como cientifica determinada disciplina? Michael Chisholm (1979) e Leonard Guelke (1977b) mostraram as dificuldades do estabelecimento de leis para as atividades humanas. Guelke, desde 1971, vem apresentando a distinção entre as ciências formuladoras de leis, como a Física e a Química, e as ciências consumidoras de leis, como a Geologia e a Geografia. Entretanto, é normal e esperado que surgissem reações contrárias à Nova Geografia, procurando seguir outras sendas filosóficas, que contestam e procuram substituir os preceitos de metodologia científica de linhagem positivista. A Geografia Humanística, a Geografia Idealista e a Geografia Radical são três tendências que ganharam ímpeto nos últimos anos.

A. Geografia Humanística
A abordagem humanística em Geografia tem como base os trabalhos realizados por Yi-Fu Tuan, Anne Buttimer, Edward Relph e Mercer e Powell, e possui a fenomenologia existencial como a filosofia subjacente. Embora possuindo raízes mais antigas, em Kant e em Hegel, os significados contemporâneos da fenomenologia são atribuídos à filosofia de Edmund Husserl (1859-1939). Evidentemente, esse movimento filosófico foi ampliado e vários autores forneceram subsídios importantes, tais como Heidegger, Merleau-Ponty e Sartre, entre outros.

A fenomenologia preocupa-se em analisar os aspectos essenciais das objetos da consciência, através da supressão de todos os preconceitos que um indivíduo possa ter sobre a natureza dos objetos, como os provenientes das perspectivas científica, naturalista e do senso comum. Preocupando-se em verificar a apreensão das essências, pela percepção e intuição das pessoas, a fenomenologia utiliza como fundamental a experiência vivida e adquirida pelo indivíduo. Desta maneira, contrapõe-se às observações de base empírica, pois não se interessa pelo objeto nem pelo sujeito. “A fenomenologia não é nem uma ciência de objetos, nem uma ciência do sujeito: ela é uma ciência da experiência” (Edie, 1962, citado in Entrikin, 1976).

Na fenomenologia existencial o espaço é concebido como espaço presente, diferente do espaço representativo da geometria e da ciência. Para a perspectiva científica o espaço é algo dimensional que se expressa por uma representação. Para o fenomenólogo o espaço é um contexto, experienciado como sendo de certa espessura, em oposição aos pontos adimensionais do espaço mensurável. A espessura do espaço é vista na concepção do “aqui”, que é um sistema de relações com outros lugares, semelhante à espessura dos conceitos temporais, tais como “agora”, que envolve aspectos do passado, presente e futuro.

A Geografia Humanística procura valorizar a experiência do indivíduo ou do grupo, visando compreender o comportamento e as maneiras de sentir das pessoas em relação aos seus lugares. Para cada indivíduo, para cada grupo humano, existe uma visão do mundo, que se expressa através das suas atitudes e valores para com o quadro ambiente. É o contexto pelo qual a pessoa valoriza e organiza o seu espaço e o seu mundo, e nele se relaciona. Nessa perspectiva, os geógrafos humanistas argumentam que sua abordagem merece o rótulo de “humanística”, pois estudam os aspectos do homem que são mais distintamente humanos: significações, valores, metas e propósitos (Entrikin, 1976).

As noções de espaço e lugar surgem como muito importantes para esta tendência geográfica. O lugar é aquele em que o indivíduo se encontra ambientado no qual está integrado. Ele faz parte do seu mundo, dos seus sentimentos e afeiçoes; é o “centro de significância ou um foco de ação emocional do homem”. O lugar não é toda e qualquer localidade, mas aquela que tem significância afetiva para uma pessoa ou grupo de pessoas. Em 1974, ao tentar estruturar o setor de estudos relacionados com a percepção, atitudes e valores ambientais, Yi-Fu Tuan propôs o termo Topofilia definindo-o como “o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou quadro físico”.

A noção de espaço envolve um complexo de idéias. A percepção visual, o tato, o movimento e o pensamento se combinam para dar-nos o nosso sentido característico de espaço, possibilitando a capacidade para reconhecer e estruturar a disposição dos objetos. O reconhecimento dos objetos implica o reconhecimento de intervalos e relações de distância entre os objetos e, pois, de espaço (Tuan, 1974a). A distância é de âmbito espaço-temporal, pois envolve não só as noções de “perto” e “longe”, mas também as de passado, presente e futuro. Todavia, para a Geografia Humanística, a integração espacial faz-se mais pela dimensão afetiva que pela métrica. Estar junto, estar próximo, não significa a proximidade física, mas o relacionamento afetivo com outra pessoa ou com outro lugar. Posso estar morando na cidade X, mas me sentir muito mais ligado à cidade Y, na qual vivi por muito tempo e onde se encontram meus familiares. Os seus acontecimentos são mais significativos e tocantes para mim que os da cidade na qual atualmente resido. Lugares e pessoas fisicamente distantes podem estar afetivamente muito próximos. Portanto, o estudo do espaço é a análise dos sentimentos e idéias espaciais das pessoas e grupos de pessoas.

Dessa maneira, Yi-Fu Tuan (1974a) observa que o “espaço e lugar estão no âmago da nossa disciplina. Sob a perspectiva positivista a geografia é a análise da organização espacial. Sob a perspectiva humanística o espaço e lugar assumem características muito diferentes. A tarefa básica do geógrafo humanista é mostrar o que eles são através de uma estrutura coerente.

Da valorização da percepção e das atitudes decorre a preocupação de verificar os gostos, as preferências, as características e as particularidades dos lugares. Valoriza-se também o contexto ambiental e os aspectos que redundam no encanto e na magia dos lugares, na sua personalidade e distinção. Há o entrelaçamento entre o grupo e o lugar. Quantos lugares nos encantam pelo típico que possuem? Entretanto, com a expansão cada vez maior da tecnologia, da massificação, das facilidades de transporte e da organização do consumo, encontramos elementos idênticos em quase todas as localidades. Os mesmos cartazes de propaganda, os mesmos produtos alimentícios, os mesmos meios de transporte, os mesmos tipos de construções e edifícios, as mesmas figuras para o divertimento infantil são encontrados de modo generalizado, nas grandes e pequenas cidades, nas mais variadas regiões e países. Isso representa o processo de universalização, o da descaracterização do lugar, que foi tema de um dos trabalhos de Edward Relph (1976).

Evidentemente, existem nuanças internas. Os trabalhos de Yi-Fu Tuan são mais candentes de humanismo, enquanto os de Anne Buttimer e Edward Relph são mais expressivos pela aplicação da perspectiva fenomenológica. Como representativos dessa perspectiva geográfica humanística inserimos o trabalho pioneiro de David Lowenthal (1961), complementado pelos artigos de Anne Buttimer (1976) e Yi-Fu Tuan (1976). Para uma ampliação do conhecimento desse setor, são úteis as leituras das obras de Edward Relph (Place and placelessness, 1976), as de Yi-Fu Tuan (Topophilia, 1974; Space and place, 1976; Landscape of fear, 1979), e a coletânea Humanistic Geography, de Ley e Samuels (1978).

B. Geografia Idealista
A Geografia Idealista representa tendência para valorizar a compreensão das ações envolvidas nos fenômenos, procurando focalizar o seu aspecto interior, que é o pensamento subjacente às atividades humanas. O filósofo e historiador R. G. Collingwood, em sua obra The idea of history, de 1956, considera que uma ação compreende dois aspectos: o exterior e o interior. O exterior compreende todos os aspectos de uma ação passíveis de descrição em função de corpos e de seus movimentos, enquanto a parte interior das ações é o pensamento subjacente aos seus aspectos observáveis (a sua parte exterior). Essa perspectiva collingwoodiana foi acatada por Leonard Guelke, que vem aplicando-a na Geografia. Em 1974 apresentou as características básicas da geografia idealista, e posteriormente mostrou a sua potencialidade de aplicação na geografia histórica (1975) e na geografia regional (1977).

Descontente com a característica pragmática assumida pela Nova Geografia, Guelke (1975) observa que “o valor pragmático de muitos trabalhos da Nova Geografia é o único aspecto a fornecer-Ihe uma justificativa maior para a sua existência. Se analisarmos a Nova Geografia somente em função da sua contribuição intelectual à disciplina, os resultados são escassos. Mas isso não é surpreendente. Os novos geógrafos simplesmente aplicavam técnicas mais sofisticadas dentro do velho contexto hartshorniano. Em outras palavras, os novos geógrafos estiveram basicamente relacionados com os atributos externos dos fenômenos e com sua associação espacial”. Por essa razão, prossegue o referido geógrafo, “a abordagem positivista fracassa em atingir a dimensão crucial do comportamento humano, principalmente o pensamento subjacente a ele. O idealismo é uma alternativa ao positivismo, tomando plena consideração da dimensão do pensamento no comportamento humano. O idealista considera que as ações humanas não podem ser explicadas adequadamente a menos que se compreenda o pensamento subjacente a elas. Onde o positivista procura explicar o comportamento como uma função dos atributos externos dos fenômenos, o idealista procura compreendê-lo em termos dos princípios internos do indivíduo ou do grupo envolvido. Em outras palavras, o idealista tenta explicar os padrões de paisagens repensando os pensamentos das pessoas que os criaram”. (Guelke, 1975).

Em seu artigo de 1974, Guelke observa que o geógrafo humano está interessado principalmente na forma pela qual uma ação possa se desenrolar, em “compreender a resposta racional para o fenômeno, mas não na explicação do fenômeno em si”. As formas de atividades humanas, em níveis individual e social, modificaram e transformaram a superfície terrestre. Assim, “o objetivo do geógrafo humano idealista é compreender o desenvolvimento da paisagem cultural da Terra ao revelar o pensamento que jaz atrás dele”.

Considerando que cada pessoa ou grupo social possui determinada visão do mundo, e que as decisões são tomadas em virtude do conhecimento teórico e conceitual que o indivíduo possui, então “uma pessoa atuará no mundo em consonância com sua compreensão sobre ele”. Como as atividades humanas expressas na superfície terrestre são oriundas das decisões tomadas pelos indivíduos ou grupos sociais, “deve-se descobrir o que eles acreditavam e não por que acreditavam. Deve-se refazer o pensamento, procurando descobrir o modo pelo qual um agente geográfico construiu sua situação a fim de se observar o elo entre pensamento e ação. Nessas circunstâncias, “o geógrafo humano tenta simplesmente reconstruir o pensamento que sustenta as ações que foram encetadas. Não necessita de suas próprias teorias, porque está interessado nas teorias expressas nas ações do indivíduo que está sendo investigado”. Por essa razão, “a meta de um geógrafo humano idealista é prover um relato verdadeiro e sua explicação”.

Ao considerar a elaboração de “relatos verdadeiros e sua explicação”, a Geografia Idealista assume posição ideógráfica em vez da nomotética. Por outro lado, a sua focalização maior é na tendência histórica que na espacial. Entretanto, Leonard Guelke ao sugerir o princípio de verificação e adotar o empirismo epistemológico e a objetividade na ciência está se encaixando nos moldes do positivismo lógico, sem realmente propor uma perspectiva substituta para a Nova Geografia. Procura, principalmente, reformular os aspectos da geografia praticada sob os princípios do positivismo, apontando a necessidade e a importância de também se incluir as preocupações com os pensamentos humanos para efetiva compreensão das organizações espaciais.

C. Geografia Radical
Outra tendência nos estudos geográficos, que se iniciou na década de 1960, está relacionada com a Geografia Radical. Em virtude do ambiente contestatório nos Estados Unidos, nos anos sessenta, em função da guerra do Vietnã, da luta pelos direitos civis, da crise da poluição e da urbanização, surgiu uma corrente geográfica preocupada em ser crítica e atuante. Vários adjetivos são mencionados para caracterizá-la, tais como geografia crítica, de relevância social, marxista e radical. Dentre eles, considero ser a denominação Geografia Radical mais abrangente e significativa, designando tudo o que seja de tendência esquerdista e a postura contestatória de seus praticantes.

Através de pequenos grupos de professores e alunos em diversas universidades americanas (John Hopkins, Clark, Simon Fraser e outras), a leitura e a análise das obras de Marx e Engels foram aspectos destacados no movimento da Geografia Radical, a fim de procurar focalizações para a análise marxista do espaço. Em 1974 fundou-se a União dos Geógrafos Socialistas (Union of Socialist Geographers), em Toronto, que se encontra organizada com base em federações locais e sem possuir uma sede central. A partir de 1975, ela se tornou responsável pela publicação da revista U. S. G. Newsletter. Outro ponto importante na evolução da Geografia Radical foi a publicação do livro de David Harvey – Social Justice and the City, 1973 -, que foi a primeira tentativa de apresentar uma síntese e um marco teórico para a análise marxista do espaço urbano. Representando a linha da relevância social surgiu em 1977 a obra de David M. Smith – Human Geography: a welfare approach -, propondo a reformulação da Geografia Humana. Nos Estados Unidos desde 1969 está em circulação a revista Antipode: a radical journal of Geography, com periodicidade semestral, que representa o veículo mais constante desse movimento geográfico, embora importantes contribuições tenham sido publicadas por diversas outras revistas geográficas. Na França, o movimento da Geografia Radical é liderado por Yves Lacoste, cujo grupo se tornou responsável pela revista Hérodote, que vem sendo editada desde 1976. No Canadá, recentemente o Cahiers de Géographie de Québec (vol. 22, n° 56, 1978) dedicou um número especial ao estudo do marxismo e geografia. Na Inglaterra, diversos trabalhos significativos estão inseridos em seus tradicionais periódicos. Richard Peet, um dos mais eminentes geógrafos radicais, organizou uma coletânea a propósito da Radical Geography, em 1978, exemplificando os vários temas analisados pelos geógrafos radicais. O desenvolvimento da Geografia Radical nos Estados Unidos foi delineado por Richard Peet, em 1977.

A Geografia Radical também visa ultrapassar e substituir a Nova Geografia. Os seus propugnadores consideram a Nova Geografia como sendo pragmática, alienada, objetivada no estudo dos padrões espaciais e não nos processos e problemas sócio-econômicos e com grande função ideológica. Desta maneira, ela procura analisar em primeiro os processos sociais, e não os espaciais, ao inverso do que se costumava praticar na geografia teorético-quantitativa. Nessa focalização, encontra-se implícito o esforço na tentativa de integrar os processos sociais e os espaciais no estudo da realidade. A Geografia Radical interessa-se pela análise dos modos os de produção e das formações sócio-econômicas. Isto porque o marxismo considera como fundamental os modos de produção, enquanto as formações sócio-econômicas espaciais (ou formações econômicas e sociais) são as resultantes. As atividades dos modos de produção constróem e geram formações diferentes. Cada modo de produção, capitalista ou socialista, por exemplo, reflete-se em formações sócio-econômicas espaciais distintas, cujas características da paisagem geográfica devem ser analisadas e compreendidas.

Para a análise dos modos de produção e das formações sócio-econômicas, os geógrafos radicais tem por base a filosofia marxista. Inserida no contexto radical do movimento cientifico, ela tem por objetivo colaborar ativamente para a transformação radical da sociedade capitalista em direção da socialista, através do incentivo à revolução. Por essa razão, a Geografia Radical deve ser marxista (Folke, 1972). Com o fito de atingir tais objetivos, surge a ênfase sobre os temas de relevância social, a fim de incentivar os mecanismos das lutas de classe, tais como: a pobreza, as desigualdades e as injustiças sociais, a deterioração dos recursos ambientais, as desigualdades espaciais e sociais nas estruturas urbanas e outros. Nesta perspectiva, o tema do “bem-estar social” não surge como novo ramo da Geografia, mas para definir “uma geografia humana nova” (Smith, 1977). Considerando que a Nova Geografia provocou uma “revolução teorética e quantitativa”, o posicionamento radical e a preocupação com a “relevância social” vem sendo propostas como indicadoras da “segunda revolução na geografia humana” (Smith, 1971, 1977). Pressupondo que as injustiças e as desigualdades sociais e espaciais são estigmas das sociedades capitalistas, e diante dos objetivos visados, compreende-se por que a Geografia Radical surgiu e se desenvolveu no seio dos países capitalistas, principalmente nos Estados Unidos e na Inglaterra. Embora existam acentuadas desigualdades sociais e espaciais nos países socialistas (Fuchs e Demko, 1979), elas não são mencionadas nem estudadas pelos geógrafos radicais.

Costuma-se criticar a ciência positivista de ser ideologicamente engajada e de não apresentar a neutralidade analítica muitas vezes propugnada. Nesse conjunto, a Nova Geografia recebe a sua parcela de admoestação. Todavia, a Geografia Radical não se comporta de modo diferente, mas está ideologicamente vinculada e sendo elemento para um objetivo político predeterminado.

Outro aspecto importante refere-se à questão metodológica. A Nova Geografia baseia-se nos procedimentos da metodologia cientifica, enquanto a Geografia Radical se assenta nos procedimentos metodológicos do matemáticos dialéticos. É tema polêmico mostrar qual dos procedimentos é o mais adequado. A fim de considerar que os procedimentos metodológicos baseados no positivismo Iógico são inadequados, em vários textos radicais o termo “cientifico” surge com conotação pejorativa. Por outro lado, digladiam-se temas como a objetividade e a exigência de verificação e refutabilidade na metodologia cientifica, e o dogmatismo e a impossibilidade de se verificar e refutar as explicações marxistas dadas aos fenômenos sócio-espaciais. Na perspectiva positivista as respostas e as soluções podem ser erradas e modificadas; procura-se melhorá-las e verificar sua validade pela refutação. Na perspectiva marxista as proposições não podem ser verificadas nem colocadas sob refutação. Elas são dogmáticas e as respostas e soluções são mais importantes que os problemas. Encontram-se já prontas as soluções marxistas para os problemas do mundo. Quando uma situação não preenche as pressuposições aventadas, ela deve ser modificada e alterada radicalmente. No setor da metodologia, os geógrafos radicais têm-se esforçado em fazer uma critica profunda e intensa sobre as perspectivas positivistas e funcionalistas imperantes na Geografia. Mas não se usa da mesma preocupação e critérios para analisar a perspectiva marxista na Geografia. O livro de Gregory Derek ldeology science and human geography, de 1978, é um bom exemplo.

Várias nuanças e preocupações podem ser vislumbradas na gama variada das contribuições dos geógrafos radicais. Em sua análise sobre a Geografia Radìcal anglo-saxônica, Maria Dolores Garcia (1978) esquematiza quatro tendências-guia:

1. linha de orientação anarquista, centralizada na Universidade de Simon Fraser e na de Clark, nesta última salientando o trabalho de Richard Peet. Esta linha remonta suas origens aos trabalhos pioneiros de Peter Kropotkin e Elisée Reclus;

2. Linha de orientação popular-radical, que se caracteriza pelo contato direto dos geógrafos com as populações das áreas e dos bairros a serem investigados. O geógrafo participa e orienta a população para solucionar seus problemas e traçar as suas reivindicações. A obra de William Bunge (1971), é exemplo desse tipo de procedimento;

3. a linha com orientação para o Terceiro Mundo, exemplificada pelos trabalhos de J. M. Blaut (1973, 1975, 1976), destinados a propor análises sobre o desenvolvimento e o imperialismo, entre vários outros temas;

4. a linha de orientação marxista, que se baseia no estudo das obras de Marx e Engels, na procura de fundamentos teóricos e na sua aplicação aos problemas sócio-econômicos de expressão espacial. Os trabalhos de David Harvey (1973, 1974, 1975, 1976) são expressivos como exemplos dessa orientação.

Em língua portuguesa encontram-se disponíveis diversas obras e artigos relacionados com a Geografia Radical. Entre as traduções, convém mencionar as obras de Yves Lacoste (A Geografia Serve Antes de Mais Nada para fazer a Guerra, 1977), de Massimo Quaine (Marxismo e Geografia, 1979) e de David Harvey (Justiça Social e a Cidade, 1980), além do artigo de James Anderson (1977), sobre a ideologia na Geografia. Entre os geógrafos brasileiros, Milton Santos vem-se salientando nessa perspectiva geográfica, através de diversos artigos e de duas obras mais expressivas, denominadas Por uma Geografia Nova (1978) e Economia Espacial (1979). Carlos Gonçalves (1978) e Ruy Moreira (1979) também já elaboraram artigos engajados nessa temática.

4. A GEOGRAFIA TÊMPORO-ESPACIAL
A Geografia Têmporo-espacial procura analisar as atividades dos indivíduos e das sociedades em função das variáveis tempo e espaço, visando traçar as trajetórias dos ritmos de vida (diários, anuais e da própria duração da vida) assinalando a alocação de tempo despendido nas diversas atividades e nos vários lugares. O contexto abrangido pelo território ao alcance do indivíduo, ou da sociedade, corresponde ao seu meio ambiente, dentro do qual ele executa as suas atividades, considerando as escalas temporais do dia, do ano ou da própria vida.

Tomando como base os trabalhos realizados por Torsten Hagerstrand, a partir de 1970, esta tendência originou o Grupo de Geografia do Tempo (Time-Geography Group), na Suécia. Na atualidade, vários outros grupos e escolas já se dedicam a essa temática, como o Grupo Multinacional de Orçamento Comparativo de Tempo (Mültinational Comparative Time-Budget Group), o Grupo Chapin, na Carolina do Norte (E.U.A.) e a Escola de Becker, que se dedica à alocação temporal na economia.

A perspectiva da análise têmporo-espacial não procura ser um campo distinto e específico no conjunto das Ciências Sociais, como se fosse uma nova disciplina. mas visa promover a integração de áreas diversificadas do conhecimento superando a lacuna entre a ciência sócio-econômica, de um lado, e a ciência bio-ecológica e tecnológica, de outro (Carlstein e Thrift,1978). É nessa integração relacionada com o uso dos recursos témporo-espaciais, que surgem das características da organização espacial, que se estabelece o potencial significativo da Geografia. A sua principal diferença reside em salientar a significância das “qualidades formais do tempo e do espaço”, e não na procura de uma categoria de fenômenos substanciais que servisse de objeto específico para sua caracterização. Os fenômenos analisados são pertencentes ao mundo das Ciências Sociais e Biológicas, “consistindo em indivíduos e populações humanas, vegetais e animais à medida que interagem com o homem, com as suas atividades, com o tempo, com o espaço, com a sua organização e instituições, com as suas metas e valores, com os seus movimentos e mobilidade, com as suas percepções e ideologias, e assim por diante” (Carlstein e Thrift, 1978). Isto porquê “as propriedades universalmente difundidas de tempo e espaço como dimensões locacionais, distributivas e existenciais da maior parte dos fenômenos são básicas à compreensão dos elementos e processos encontrados no mundo real”.

As questões relacionadas com o uso do tempo são fundamentais para a perspectiva têmporo-espacial da Geografia, tanto em relação ao indivíduo como em relação aos grupos. As atividades desenvolvidas pelos indivíduos e grupos, na família, nos locais de trabalho e nas horas de lazer exigem construçõees adequadas, meios de transporte e organização dos horários. Para que os membros da sociedade possam usufruir dos divertimentos e lazeres, por exemplo, é preciso que essas atividades sejam oferecidas fora dos seus horários de trabalho e numa localização próxima da sua residência, que permita um deslocamento conveniente e acessível de ida e volta. A escolha de residência, de locais de trabalho, de cidades para morar, são decisões que envolvem seleção de pontos para usufruir das regalias e disponibilidades sociais e para distribuir convenientemente o uso do tempo diário nas diversas atividades. Os recursos individuais e familiares (renda, uso de carro etc.) criam condições que liberam as pessoas para agir numa porção maior do espaço e para executar tarefes mais diversificadas.

Nas sociedades industriais o desenvolvimento tecnológico intensifica a produtividade e promove a diminuição das horas das jornadas de trabalho. O indivíduo passa a dispor de mais “horas livres” que podem ser gastas em atividades culturais, recreativas, esportivas, sociais e outras. Há necessidade de organizar-se a distribuição espacial dos locais que permitam essas atividades, assim como dispor o seu horário de funcionamento para atingir o maior número possível de usuários. Considerando o ritmo das atividades diárias, os programas de televisão, por exemplo, procuram atingir faixas distintas da população em suas transmissões matinais, vespertinas e noturnas.

As atividades produtivas e as características das classes sócio-econômicas são importantes na análise têmporo-espacial. São significativas, por exemplo, as diferenças no uso do tempo entre as populações urbanas e as rurais. Outro aspecto relaciona-se com o valor do tempo gasto. As pessoas de baixo nível social e cultural executam tarefas de baixo rendimento pois o seu tempo é barato. As pessoas de alto nível social e cultural apresentam valor do tempo muito mais elevado, cujo gasto não é destinado à execução de tarefas simples e rotineiras. Delegar as tarefas domésticas e de limpeza às empregadas é procedimento usual nas famílias abastadas, assim como os subalternos executam muitas tarefas delegadas pelos patrões e dirigentes.

As questões e os problemas que podem ser focalizados sob a perspectiva têmporo-espacial são muito diversos, envolvendo aspectos da localização espacial dos artefatos humanos e a distribuição do uso do tempo. Representando mais um instrumento de análise, um “modelo têmporo-geográfico”, essa focalização não surge como uma nova perspectiva geográfica. Valorizando os entrelaçamentos das variáveis tempo e espaço, pode ser englobada e manejada pelos adeptos da Nova Geografia, da Geografia Humanistica e da Geografia Radical, sendo possível aplicar-Ihe os procedimentos metodológicos e os posicionamentos explicativos que se queira atribuir aos fenômenos organizacionais das sociedades humanas.

Em 1973, Alan R. Pred redigiu valioso apanhado global sobre as atividades geográficas em desenvolvimento na Suécia. Um dos itens sintetizava os conceitos e as perspectivas do modelo têmporo-geográfico das sociedades, estabelecido conforme a proposição de T. Hagerstrand.

5. CONSIDERAÇÃO FINAL
As diversas correntes e tendências que fluem nos estudos geográficos da atualidade delineiam as características e os rumos para a Geografia. Essas perspectivas enriquecem-na conceitualmente e promovem o seu dinamismo científico e utilitário. A Geografia continua sendo uma ciência, com ebulições variadas em seu âmbito. Ao geógrafo, ao indivíduo praticante, cabe fazer a Geografia tornando-se adepto de uma ou outra perspectiva, analisando o conjunto global ou as categorias setoriais dos fenômenos. Compete ao geógrafo conhecer as várias tendências, avaliar seus pontos positivos e negativos, as suas vantagens e desvantagens, e conscientemente optar por uma delas. Ou, validamente, propor novas perspectivas que sejam mais eficazes e satisfatórias que as anteriores.

Bibliografia:
CHRISTOFOLETTI, Antônio. As características da nova geografia. In Perspectivas da geografia. 2ed. São Paulo: Difel, 1985, p.71-101.

Índice
1. A geografia tradicional
2. A nova geografia

– a) Rigor maior na aplicação da metodologia científica
– b) Desenvolvimento de teorias
– c) O uso de técnicas estatísticas e matemáticas
– d) A abordagem sistêmica
– e) O uso de modelos

3. As tendências das geografias alternativas

– A – Geografia Humanística
– B – Geografia Idealista
– C – Geografia Radical

4. A geografia têmporo-espacial
5. Consideração final

Fonte:
http://ivairr.sites.uol.com.br/christofoletti.htm